“Por que vês o cisco no olho de teu irmão, e não percebes a trave no teu olho?” (Mt. 7:3)
Para nós, humanos encarnados, é muito distante a ideia do absoluto, do eterno, do infinito. Na terceira questão de O Livro dos Espíritos, Kardec indaga se Deus seria o infinito, ao que o espírito responde: “pobreza da linguagem humana, insuficiente para definir o que está acima da linguagem dos homens.”
A humanidade também não se encontra apta a compreender uma verdade que não seja momentânea ou parcial, tanto que Kardec descartou o dístico fora da verdade não há salvação, “porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o privilégio da verdade.”[1]
Diante da ausência da compreensão de um absoluto, criamos um Deus de barbas brancas e com emoções humanas, quantas vezes vingativo e cruel. Diante da incompreensão de um eterno, forjamos um tempo com marco inicial, embora há mais de um século a ciência tenha demonstrado que o tempo não é absoluto. O que chamamos de tempo teve um início.
A criação segue seu curso evolutivo, somente Deus é a completude e, como tal, longe estamos de sua compreensão, faltando-nos para isso os sentidos adequados[2].
Diante dessa vida velada, não estamos cerceados da sabedoria, mas somos crianças morais e intelectuais, vivenciando o Mito da Caverna de Platão. Percebemos meras sombras, mas de tempos em tempos um de nós se levanta e caminha para o exterior, trazendo também seu naco de verdade, mas tendo que explicar o desconhecido com as nossas palavras.
Quem já teve a graça de conhecer as esculturas dos profetas, do mestre Antônio Francisco Lisboa, Aleijadinho, na cidade mineira de Congonhas, pôde perceber que, aos pés do profeta Jonas, se encontra um peixe, e não a mítica baleia que o teria engolido. O sensível artífice, habituado às montanhas mineiras, jamais havia visto uma baleia, esculpindo conforme as parcas informações, aliadas ao que conhecia. Do mesmo modo, concebemos o Criador.
O filósofo grego Protágoras nos legou profundo ensinamento, ao dizer que o homem é a medida de todas as coisas. Tudo o que se concebe está inserido em nossas bases e, portanto, é limitado.
Vivemos de comparações na tentativa de compreender todas as coisas, e nada há de errado nisso, pois é o instrumento de que dispomos – Jesus teve que usar de parábolas do cotidiano para que compreendêssemos a vida espiritual. Contudo, o verdadeiro problema começa no momento em que nossa apreciação passa a ser viciada pelas chagas da humanidade: orgulho e egoísmo[3].
Como consta da questão 75, “a”, de O Livros dos Espíritos, a razão seria um excelente guia, “se não fosse falseada pela má educação, pelo orgulho e pelo egoísmo.”
A deturpação da razão começa justamente pelas perguntas direcionadas ao nosso sucesso, ao invés de perguntas sinceras que, ainda que lacerantes, teriam o condão de laborar por nossa transformação.
Comparando, em geral buscamos aqueles que, ao menos aos olhos do presente, se encontram em situação mais difícil que a nossa. Se desejamos algo do próximo, eles roubam. Se temos vontade de agredir, eles matam. Se pensamos impropérios, eles os dizem em altos brados.
Não que não nos seja lícito observar os que parecem em situação moral mais penosa, afinal, devemos reconhecer nossos progressos, o que é um bom caminho para fugirmos da vitimização e da falsa humildade que nos retêm, pois nunca estamos prontos, nunca somos dignos, o que, na verdade, é fuga do labor necessário ao aprimoramento.
Por outro lado, também é útil a comparação com aqueles que mais andaram que nós. Se sou médium ativo, melhor estou que os que abandonaram a mediunidade. Mas como estou diante de Chico Xavier? Se pratico a caridade, qual meu esforço se comparado ao de Irmã Dulce? Pratico o bem no limite de minhas forças?[4]
Contudo, é mais produtivo nos compararmos a nós mesmos, verificando se temos crescido ou ficamos estagnados. Não somos páginas em branco, mas almas reencarnadas com grande bagagem. Muitas vezes podemos nos ver em situação superior à do homicida. Mas se meditarmos com cuidado, observaremos que já não éramos homicidas antes do renascimento, tal conquista já estava em nosso coração antes dessa vida. Então, a pergunta é: o que acrescentamos nessa existência?
Por isso mesmo, o Mestre nos conclama ao autoconhecimento, ao proferir o célebre ensinamento de que vemos os mínimos defeitos no próximo, mas deveríamos enxergar a trave em nosso olho.
Muito da obra de Jesus é nos trazer à maioridade espiritual e, como tal, à responsabilidade, que exige discernimento desapaixonado. Para justificar o apedrejamento da mulher adúltera, os homens invocaram a lei mosaica, que previa tal penalidade. Jesus, ao invés de mostrar a contradição da lei com um dos Dez Mandamentos, não matar, apenas disse que, o que não tivesse pecado, atirasse a primeira pedra.
Em outros termos, pediu que cada um consultasse a própria consciência para verificar se teria autoridade para tal julgamento, e a reação foi rápida e profunda. As pedras caíram das mãos e os executores, cabisbaixos, retomaram seus afazeres, refletindo sobre o próprio coração, e não mais sobre o erro da mulher.
Ademais, era profundamente injusto julgar a mulher por inteiro por um evidente equívoco. Com nos ensina Emmanuel:
“É imprescindível habituar a visão na procura do melhor, a fim de que não sejamos ludibriados pela malícia que nos é própria.”[5]
Muito bem sabemos hoje que rebaixar o próximo é uma forma equivocada de nos elevarmos, por isso as críticas são tão frequentes em nosso mundo, e os elogios são mais raros. Apontar é mais usual que compreender e, diga-se, conforme o Cristo, compreender não é autorizar, pois o Mestre, ao final, diz à mulher adúltera: vá, e não peques mais.
Trata-se de grave problema de autoestima, nutrido pela maioria da humanidade. Inferiorizados, alguns se escondem, outros tornam-se violentos, outros ainda cabotinos, mas todos fugindo de enfrentar a realidade e, acima de tudo, amarem-se como são e, a partir daí, buscarem o aperfeiçoamento. Joanna de Ângelis nos lembra da necessidade de compreendermos nossa identidade:
“A imaturidade psicológica do homem leva-o a anular a própria identidade, em face dos receios em relação às lutas e ao mundo nas suas características agressivas. A timidez confunde-o, fazendo com que os complexos de inferioridade lhe aflorem, afastando-o do grupo social ou propelindo-o à tomada de posições que lhe permitam impor-se aos demais. A violência latente se lhe desvela, disfarçando os medos que lhe são habituais.
Ocultando a identidade, mascara-se com personalidades que considera ideais – cada uma a seu turno – e que são copiadas dos comportamentos de pessoas que lhe parecem bem, que triunfaram, que são tidas como modelares, na ação positiva ou negativa, aquelas que quebraram a rotina e que, de alguma forma, se fizeram amadas ou temidas.”[6]
Toda solução aparente é provisória e ilusória e, acima de tudo, embora tenha o Cristo usado de uma imagem forte para nos despertar, pouco importa se temos o cisco ou a trave no olho – o que se deve é limpar os olhos.
Joanna, na obra já citada, também nos compara a crianças, afirmando que “a larga infância psicológica das criaturas é dos mais graves problemas na área do comportamento humano.” Referindo-se mais especificamente à encarnação em curso, trata da infância física e seus reflexos na vida adulta:
“Habituada, a criança, a ter as suas necessidades e anseios resolvidos, imaturamente, pelos adultos – pais, educadores, familiares, amigos – ou atendidos pela violência do clã e da sociedade, nega-se a crescer, evitando as responsabilidades que enfrentará.”
Essa dificuldade de aceitação das responsabilidades desencadeia diversos fenômenos nocivos:
“É comum ver-se agressão verbal contra outrem, motivada pela inveja, que é a causa real, porém disfarçada de defesa deste ou daquele ideal, de uma ou de outra forma de comportamento. Nessa atitude está embutida uma fuga psicológica ocultando a causa real do desapontamento, transformado em rebeldia e mágoa.”[7]
Jesus, nosso guia e modelo, reforçou lição que já era de antigo conhecimento: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo com a si mesmo. Ou seja, desde sempre o amar a si mesmo foi um fator central no processo de crescimento moral:
“O incomparável psicoterapeuta Jesus bem definiu o sentido do amor ao explicar ser ele fundamento essencial a uma existência feliz, conforme a excelente síntese: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
Nessa admirável proposição de terapia libertadora, estão os postulados essenciais do amor que, para fins metodológicos, invertemos a ordem apresentada para nova análise: amar-se a si mesmo, a fim de amar ao próximo e, por consequência, amar-se a Deus.”[8]
Não poderia ser diferente. Se temos que amor ao próximo, em uma primeira leitura, deve-se considerar efetivamente quem está fisicamente próximo, como pai, esposa filhos, compatrícios, pois sem entender quem está perto não é possível chegar ao amor universal. Mas o primeiro próximo somos nós mesmos! Prossegue Joanna de Ângelis:
“Somente ama de fato aquele que é feliz, despojado de conflitos, livre de preconceitos, identificado com a vida.”
Joanna nos lembra ainda que amor é doação:
“O desenvolvimento do amor faz-se lentamente, conquista a conquista de experiência, de vivência, de entrega…”
Na obra Conflitos Existenciais[9], a mentora reforça a necessidade do autoamor:
“Somente é capaz de amar a outrem aquele que se ama. É indispensável, portanto, que nele haja o autoamor, o autorrespeito, a consciência de dignidade humana, a fim de que as suas aspirações sejam dignificantes, com metas de excelente qualidade.
Amando-se, a si mesmo, o indivíduo amadurece os sentimentos de compreensão da vida, de deveres para com a autoiluminação, de crescimento moral e espiritual, exercitando-se nos compromissos relevantes que o tornam consciente e responsável pelos seus deveres.”
Quem aprende a amar a si mesmo afasta as nódoas do egoísmo e da baixa autoestima. Não rebaixa o semelhante para supostamente sentir-se bem. Ama-se sem o orgulho indevido, que oculta de si as fraquezas. Ama-se com os próprios defeitos, que procura bem conhecer, para os enfrentar. Não se preocupa com o cisco no olho do irmão, exceto para auxiliar.
Tem no horizonte apenas aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida.
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[1] O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XV – Fora da caridade não há salvação.
[2] O Livro dos Espíritos: Questão 10. Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus? “Não; falta-lhe para isso o sentido.”
[3] O Livro dos Espíritos: Questão 785. Qual o maior obstáculo ao progresso? “O orgulho e o egoísmo…
[4] O Livro dos Espíritos, Questão 642. Para agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal? “Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”
[5] Fonte Viva, espírito Emmanuel, psicografia de Chico Xavier, cap. 113 – Busquemos o melhor.
[6] O Homem Integral, espírito Joanna de Ângelis, psicografia de Divaldo Franco, cap. 6 Maturidade Psicológica.
[7] Conflitos Existenciais, espírito Joanna de Ângelis, psicografia de Divaldo Franco, cap. 1 Fugas Psicológicas.
[8] Conflitos Existenciais, espírito Joanna de Ângelis, psicografia de Divaldo Franco, cap. 19 Amor.
[9] espírito Joanna de Ângelis, psicografia de Divaldo Franco, Sublimação do Amor.