Por Marcílio Cunha-Filho e Pedrita Montenegro

A condição de encarnados limita a visão ao mundo material e poucos são conscientes da vida de relação que se trava com a realidade espiritual. A ignorância humana acerca da continuidade da vida não orgânica dá ensejo a julgamentos precipitados que podem agravar sofrimentos que se pretendia aliviar. Por isso, a história narrada no livro Sexo e Destino de Chico Xavier, psicografia do espírito André Luiz, em que a realidade interplanos é retratada em cores vivas, ilustra de forma contundente o que pode estar em jogo em uma situação de desencarne próximo e conduz a profundas reflexões em um tema delicado e atual – a eutanásia (Xavier, 1963)

A história, contada em detalhes no livro, envolve um núcleo familiar adoecido, em que todos parecem dissimular suas intenções vivendo uma vida íntima diversa da aparência social. Cláudio e Márcia são um casal de meia idade envenenados pela mágoa e que mal se toleram. Marina e Marita, suas filhas, são adultas jovens que replicam, em grande medida, o comportamento dos pais. As más escolhas desses personagens vão conduzindo a uma situação limite que constitui verdadeiro ponto de inflexão para todos. Cláudio, em ultrajante plano para envolver-se amorosamente com Marita, sua filha adotiva, causa tamanho estado de perturbação na jovem que acaba por precipitá-la em acidente automobilístico. A gravidade da fatalidade praticamente inviabiliza a recuperação de seu corpo físico. Nesse momento, o protetor espiritual da família, irmão Félix, toma uma importante decisão – a de evitar o desencarne imediato e manter Marita com vida pelo tempo que fosse possível, pese a inviabilidade de uma recuperação, tal o estado de desorganização do seu veículo de carne.

O relacionamento dentro desse núcleo familiar havia chegado a níveis morais lamentáveis. Diante da tragédia que se apresentava, o desencarne de Marita poderia ser, à primeira vista, a medida mais piedosa para a jovem e demais envolvidos. Manter Marita viva em condições vegetativas deploráveis parecia cruel considerando apenas a perspectiva da matéria. Temos aqui um cenário típico em que muitos apontariam a eutanásia como solução mais humanitária e conveniente a todos.

A eutanásia é tema controverso, que vem ganhando espaço na mídia, e tem seus aspectos técnicos e legais discutidos em grupos de estudos especializados e em escolas médicas e de direito. Em 2015, o primeiro caso legal de eutanásia realizado na Colômbia fez a temática da morte assistida ganhar ampla divulgação nos meios de comunicação. No mesmo ano, o suicídio assistido foi também autorizado no Canadá e no estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Atualmente, a morte assistida é uma opção legal em alguns países europeus como Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça; nos estados norte-americanos de Oregon, Washington, Montana, Vermont e Califórnia; bem como na Austrália e Nova Zelândia (DE CASTRO). No Brasil, a eutanásia é considerada crime, embora o tema enseje acaloradas discussões em fóruns filosóficos, políticos e religiosos.

Pese a relevância e caráter irrevogável da medida, recente pesquisa entre médicos relevou um dado inquietante: mais da metade dos participantes do levantamento desconheciam adequadamente os conceitos de eutanásia e de duas outras práticas clínicas relacionadas, a distanásia e a ortotanásia (DE ALENCAR CANO, et al., 2020).

A eutanásia pode ser definida com a ação de provocar a morte de uma pessoa que sofre de uma doença incurável (FERREIRA, 1999). A palavra vem do grego – eu (bom) + thanatos (morte) – sendo livremente traduzida como “boa morte” ou “morte sem dor”. A ortotanásia, por sua vez, tem uma prática médica bastante diversa que consiste em aliviar as dores do doente que sofre de enfermidade considerada incurável e irreversível, proporcionando-lhe conforto para que o ato de morrer seja mais suportável e que ocorra com uma dignidade compatível com a condição humana, ou mesmo, que a morte possa ocorrer em seu processo natural e inevitável, respeitando-se o direito de morrer com dignidade e amparado por cuidados paliativos. A distanásia, em contrapartida, refere-se a prática clínica de manter a vida a qualquer custo por meios artificiais, empregando todos os recursos disponíveis para tornar a morte mais difícil e demorada, ainda que signifique ampliar a dor e o sofrimento do paciente. Nessa prática, o bem-estar do paciente e seus familiares é colocado em segundo plano.

Os defensores da eutanásia baseiam-se na ideia de que, em determinadas circunstâncias nas quais a vida deixou de ser permanentemente agradável ou útil, o doente “merece” ter provocada a morte de maneira suave, sem dor, seja ela praticada pelo próprio doente (ativa), ou por outra pessoa que o auxilia (passiva). Esse pensamento parece coerente e baseado no senso comum quando se parte do pressuposto da vida como apenas constituída do corpo físico, resumindo-se à expressão orgânica.

Mesmo assumindo que não há evidência científica conclusiva da continuidade da vida fora do corpo biológico para a maior parte da comunidade acadêmica, também é fato que não há elementos comprobatórios que possam afastar completamente essa hipótese. Assim, mesmo deixando de lado aspectos religiosos, ao considerar que há a possibilidade de manutenção da consciência individual que extrapola o corpo, a conduta técnica mais coerente e cautelosa seria evitar medidas terminais e irremediáveis como a eutanásia.

Outro aspecto bastante pragmático a ser considerado diz respeito à dificuldade clínica de diagnóstico de uma enfermidade terminal. A literatura médica está repleta de casos de erros de diagnóstico e de prognósticos. Ainda, o caráter incurável de qualquer condição pode ser circunstancial, considerando os rápidos avanços da ciência. A medicina nunca foi uma ciência exata, o que demostra que muitas outras variáveis na relação saúde-doença ainda estão por serem descobertas nessa área.

Nesse contexto, não se pode também ignorar a interferência da fé em casos de curas vistas como milagrosas. Quantos relatos documentados de pessoas que proferiram uma oração ou que através de um ato de fé tiveram o curso de uma doença alterado contra todos os prognósticos médicos? Quantas pessoas com câncer incurável, enviadas para morrerem no domicílio, tiveram todos os nódulos malignos extintos espontaneamente e se tornaram saudáveis novamente?

Dr. Bernard Siegel ganhou notoriedade ao compilar vários relatos de curas envolvendo pacientes que começaram a rever suas vidas a partir de uma perspectiva mais espiritualizada (SIEGEL, 2020). Na biografia do renomado médium Chico Xavier, há várias experiências com intervenções da espiritualidade proporcionando curas. Em um desses relatos, uma paciente que não podia comprar o medicamento prescrito pelo médico espiritual, foi instruída a rasgar a receita médica e ingerir seus fragmentos todos os dias como se fosse o próprio remédio, terminando por curar-se completamente (GAMA, 1995).

Nesse complexo cenário, o Espiritismo funciona como a lente de um microscópio revolucionário que permite enxergar uma realidade antes inexistente para o homem. O conhecimento do mundo espiritual coloca tudo em diferente perspectiva, trazendo entendimento diverso acerca das experiências na Terra. A partir desse novo conhecimento, o sofrimento passa a ter sempre uma causa que pode remontar a vidas passadas e a dor tem a proposta de possibilitar a evolução. A cura dos males morais será sempre mais importante que a cura dos males físicos, e por isso a dor sempre existirá na Terra, enquanto ela for um mundo de provas e expiações (Kardec, 1864). Quando se tenta fugir da lição necessária, ela acaba por retornar em outro momento, da mesma forma ou em uma outra roupagem, mas sempre com a finalidade de aprendizado e evolução.

Os instantes finais da vida corporal podem ser de grande importância na jornada evolutiva do espírito. A eutanásia acabaria, assim, abortando as oportunidades de crescimento pessoal para o paciente e seus familiares. A vida não se acaba com a morte física, e muito menos a dor. Muito ao contrário, as dores e sofrimentos podem até se tornar mais intensas nos pós túmulo e em uma vida futura, como forma de penitência pela falta de resignação. A eutanásia constitui, portanto, afronta à natureza e a Deus e está equiparada ao suicídio. Para os espíritos da codificação “é sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a existência” (KARDEC, 1857).

Não foi casualidade, portanto, que a espiritualidade superior trouxe à tona na psicografia de André Luiz a história emblemática de Marita, mostrando os desdobramentos dramáticos, sofridos e decisivos que os momentos finais da vida podem ter, não apenas para o doente, mas para todos que sofrem a repercussão emocional dessa situação.

Na história, quando aos olhos da matéria somente era possível enxergar horror e dor, irmão Felix, experimentado protetor espiritual, viu a possibilidade de romper o círculo vicioso que aquela família se encontrava. Prolongar a vida orgânica de Marita, seria doloroso, mas permitiria mudar o rumo daquela família disfuncional que recapitulava fracassos do passado. Para tanto, dedicada equipe médica no plano espiritual foi destacada para manter Marita com vida por mais algumas semanas, lançando mão de vários recursos da medicina espiritual desconhecidos da Terra em esforço hercúleo para aproveitar aquela oportunidade.

A partir do acidente, desencadeia-se um processo de amadurecimento espiritual acelerado de quase todos os envolvidos. Cláudio entra em estado de choque ao se deparar com a filha moribunda. Sofrimento indizível que promove mudança radical no seu comportamento moral que passa a cuidar com desvelo e abnegação daquela filha diuturnamente. Ainda, no curso de alguns meses, Cláudio transforma completamente o seu comportamento vicioso e arrogante por atitude humilde e virtuosa. Mas será que é possível empreender tamanha transformação em tão pouco tempo? Como alguém como Cláudio, capaz de atrocidades como violar a filha adotiva, ser negligente com a filha consanguínea e infiel à esposa seria capaz de tal mudança?

A reforma íntima e a reparação dos erros demandam por vezes longo caminho no curso das encarnações, contudo, a disposição a seguir novos valores morais é uma questão de decisão que pode ser tomada em um instante. Essa mudança de rumo, às vezes necessita de um estopim que mexa com as fibras mais íntimas. Para Cláudio, a culpa pela morte iminente de Marita era a sua estrada de Damasco. Os vícios da carne parecem desestabilizar por vezes a bússola moral que temos em nós. Processos de sofrimento agudo podem fazê-la voltar a funcionar repentinamente.

Não se pode desconsiderar que o contato com a doutrina espírita teve papel decisivo na mudança de Cláudio. A proximidade com ideias mais elevadas permitiu uma maior atuação da espiritualidade amiga que sempre esteve presente, mas nunca havia encontrado abertura mental para atuar. Antes, Cláudio exercia seu livre arbítrio e estava entregue aos seus instintos mais primitivos, jungido a obsessores de idêntica vibração. Depois do acidente, abriu-se espaço para influência de ideias mais nobres. Sua mudança de comportamento também causou fortes impressões em seu obsessor habitual – Moreira.   O trauma do acidente mexeu com o embrutecido espírito que amava Marita infinitamente. Não há surpresa que seja o amor, resgatado em sua pureza original, o sentimento poderoso que emana do Criador e que é capaz de promover um despertar quase inverossímil. Assim como Cláudio, em pouco tempo, aquele espírito enveredado no mal, transformava-se em guarda-costas da família, protegendo e auxiliando seus membros com a mesma energia que antes se dedicava a destruir.

A mudança de comportamento do progenitor repercute em todos a sua volta como raios de luz dissipando a escuridão. Marina, sua filha, é umas das primeiras a ter sua vida iluminada. A disputa amorosa com a irmã adotiva e a pesada carga de sua conduta reprovável a conduziram a estado de quase loucura. A atuação do renovado Claudio é decisiva no reestabelecimento da filha que renova valores morais e se reergue. No caso de Márcia, a esposa de Cláudio, o trauma abre uma brecha emocional que é pouco aproveitada, uma vez que ela continua a atuar maquinalmente movida pela conveniência da matéria, desaproveitando a oportunidade do acerto de contas com a consciência que ficaria adiado.

Possivelmente, nada seja mais marcante nessa narrativa do que o desfecho de Marita. Sem conseguir expressar-se através de um corpo físico imprestável após o acidente, a jovem, retoma a consciência de si e do que lhe passara, sentindo-se humilhada e horrorizada pelo ato criminoso de Cláudio. Contudo, no curso daquelas breves semanas, ela registra a presença ininterrupta do pai, cuidando-a e envolvendo-a com vibrações do mais sincero amor. Apesar de presa no corpo imóvel, as ações e intenções do pai conseguem libertar Marita das algemas da mágoa. E em cena das mais emocionantes da literatura espírita, Marita perdoa seu pai e seu espírito liberto do corpo inerte retorna a verdadeira vida.

Essa história é um presente da espiritualidade, dando testemunho que cada momento da vida na Terra é valiosa oportunidade de progresso. É preciso entender que muitas situações da vida, inclusive as mais dolorosas, podem ser decisivas para o aproveitamento da encarnação. Estejamos atentos e façamos valer a oportunidade recebida.

 

Referências

DE ALENCAR CANO, Carlos Wilson et al. End of Life: Conceptual Understanding of Euthanasia, Dysthanasia and Orthothanasia. Revista Bioética, v. 28, n. 2, p. 376-383, 2020.

DE CASTRO, Mariana Parreiras Reis et al. Eutanásia e Suicídio Assistido em Países Ocidentais: Revisão Sistemática. Revista Bioética, v. 24, n. 2, 2016.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. Nova Fronteira, 1999.

GAMA, Ramiro. Lindos Casos de Chico Xavier. Livraria Allan Kardec Editora Ltda, 11a edição, São Paulo, 1995.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Federação Espírita Brasileira, 1857.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira, 1864.

LUIZ, André; XAVIER, Francisco Cândido, VIEIRA, Waldo. Ação e Reação. Federação Espírita Brasileira, 1963.

SIEGEL, Bernie S. Amor, Medicina e Milagres. São Paulo: Ed Nova Cultural, 2000.