Por Ricardo Baraviera 

 

“Vinde a mim, vós que estais fatigados, e eu vos aliviarei.” (Mt 11:28)

 

O Mestre, perfeito conhecedor do coração de seus tutelados, em diversas oportunidades nos conclamou ao trabalho. Contudo ciente de nossa inércia moral, também nos tocou de outro modo, indicando que a transformação muitas vezes não decorre de uma opção, mas de um cansaço dos erros e dos sofrimentos. Não uma opção, mas quase uma falta de opção, já que as demais teriam sido testadas sem sucesso.

Na obra Boa Nova, do espírito Humberto de Campos, psicografada por Chico Xavier, há um capítulo dedicado a Maria de Magdala (ou Madalena), no qual se descreve seu interior cansado das ilusões da matéria, sendo tocado pelo amor divino:

Maria de Magdala ouvira as pregações do Evangelho do Reino, não longe da vila principesca onde vivia entregue a prazeres, em companhia de patrícios romanos, e tomara-se de admiração profunda pelo Messias. Que novo amor era aquele apregoado aos pescadores singelos por lábios tão divinos? Até ali, caminhara ela sobre as rosas rubras do desejo, embriagando-se com o vinho de condenáveis alegrias. No entanto, seu coração estava sequioso e em desalento. Jovem e formosa, emancipara-se dos preconceitos férreos de sua raça; sua beleza lhe escravizara aos caprichos de mulher os mais ardentes admiradores; mas seu espírito tinha fome de amor, O profeta nazareno havia plantado em sua alma novos pensamentos. Depois que lhe ouvira a palavra, observou que as facilidades da vida lhe traziam agora um tédio mortal ao espírito sensível. As músicas voluptuosas não encontravam eco em seu íntimo, os enfeites romanos de sua habitação se tornaram áridos e tristes. Maria chorou longamente, embora não compreendesse ainda o que pleiteava o profeta desconhecido. Entretanto, seu convite amoroso parecia ressoar-lhe nas fibras mais sensíveis de mulher. Jesus chamava os homens para uma vida nova. – negritamos

Maria de Magdala não compreendera, até ali, a mensagem do Cristo, mas o chamado à renovação entrou em seu coração e, auscultando-o, Maria encontrou um enorme vazio, e de repente as belezas do mundo perderam sentido e beleza. Olhando para trás, viu em toda sua trajetória o mesmo silêncio. Nada edificara, e agora percebia que o que vivenciara não tinha qualquer substância. Maria sentiu “tédio mortal”, e então empreendeu trajetória única de redenção na história da humanidade.

Na obra Libertação, também psicografada por Chico Xavier, o espírito André Luiz nos conta de Gregório, espírito há séculos empedernido no mal e cruel sacerdote em estranha cidade na zona umbralina. A obra nos conta do processo de resgate desse Irmão, também nos dando conta do processo de tédio que abriu as portas ao doloroso início de um longo caminho de resgate:

– Irmão Gúbio, agradeço-te o concurso dadivoso. Creio haver chegado, efetivamente, o instante de aceitar-te a ajuda fraterna, em favor da libertação de meu infortunado Gregório. Espero, há séculos, pela renovação e penitência dele … Chefia condenável falange de centenas de outros espíritos desditosos, cristalizados no mal e que lhe obedecem com deplorável cegueira e quase absoluta fidelidade. Agravou o passivo de suas dívidas clamorosas, trazidas da insânia terrestre, e vem sendo instrumento infeliz nas mãos de inimigos do bem, poderosos e ingratos… Há cinqüenta anos, porém, já consigo aproximar-me dele, mentalmente. Recalcitrante e duro, a princípio, Gregório agora experimenta algum tédio, o que constituí uma bênção nos corações infiéis ao Senhor. Já lhe surpreendo no espírito rudimentos de necessária transformação. Ainda não chora sob o guante do arrependimento benéfico e parece-me longe do remorso salvador; entretanto, já duvida da vitória do mal e abriga interrogações na mente envilecida. Não é tão severo no comando dos espíritos desventurados que lhe seguem as determinações e o colapso de sua resistência não me parece remoto. – negritamos

Gregório também não havia se transformado, encontrando-se extremamente distante da compreensão e aceitação do Evangelho, mas agora, finalmente, experimentava algum tédio, tédio este que abriu as portas ao seu resgate. Como sabemos, a espiritualidade respeita o livre arbítrio e não desperdiça tempo e oportunidade. Não fazia sentido, até então, disponibilizar equipes em socorro daquele Irmão que o rejeitaria.

Ao mesmo tempo, jamais ficou desamparado, especialmente sob os cuidados de Matilde, iluminado espírito que foi sua mãe em outra existência e preparava-se novamente para o amoroso encargo.

Na obra O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, encontramos o CÓDIGO PENAL DA VIDA FUTURA, cujo artigo 33 nos fala da imperfeição e do tédio:

33º — Em que pese a diversidade de gêneros e graus de sofrimentos dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-­se nestes três princípios:

1º — O sofrimento é inerente à imperfeição.

2º  —  Toda imperfeição, assim como toda falta dela promanada, traz consigo o próprio castigo nas conseqüências naturais e inevitáveis: assim, a moléstia pune os excessos e da ociosidade nasce o  tédio, sem que haja mister de uma condenação especial para cada falta ou indivíduo.

3º  —  Podendo todo homem libertar­-se das imperfeições por efeito da vontade, pode igualmente anular os males consecutivos e assegurar a futura felicidade. A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra: — tal é a lei da Justiça Divina. – negritamos

Na sabedoria da lei divina, a punição não decorre propriamente de julgamentos ou, em uma visão mais adequada à doutrina espírita, dos diversos grupos de espíritos que cuidam da reencarnação e, com o auxílio do próprio reencarnante, desde que minimamente esclarecido, programam as principais provas a serem enfrentadas na existência futura.

O que se poderia chamar punição, na verdade, é um estado interior de sofrimento, inerente a quem se afasta da lei divina. Conforme questão 614 de O Livro dos Espíritos, “a lei natural é a lei de Deus. É a única verdadeira para a felicidade do homem. Indica-lhe o que deve fazer ou deixar de fazer e ele só é infeliz quando dela se afasta.” Ou seja, somos programados para o amor, já que somos filhos de Deus, e quando resistimos ou confrontamos nossa natureza entramos em estado de sofrimento.

O que consideramos punição, diga-se, é, na verdade, a bênção do Criador, que nos permite retornar para desfazermos as injustiças que perpetramos e, assim, nos apaziguamos com a lei de amor e com a nossa consciência.

Conforme o Código Penal da Vida Futura, o tédio é uma consequência do ócio. Entenda-se aqui o ócio como um processo moral, haja vista que a simples ocupação do tempo jamais preencherá nosso vazio, o que os excessos do mundo nos mostram todos os dias, seja no milionário que, detentor de centenas de carros de luxo, sempre adquire mais um, seja pelo álcool e drogas ilícitas, festas e desregramentos sexuais. No despertar do dia seguinte o vazio estará lá, incólume.

Ainda na obra O Céu e o Inferno, temos diversos depoimentos de espíritos que merecem apreciação.

Na mensagem “Exprobrações de um Boêmio”, o espírito guia do médium mostra a influência do materialismo sobre a vida espiritual:

A influência da matéria segue­-os além­ túmulo, sem que a morte lhes ponha termo aos apetites que a sua vista, tão limitada como quando na Terra, procura em vão os meios de os saciar. Por não terem nunca procurado alimento espiritual, a alma erra no vácuo, sem norte, sem esperança, presa dessa ansiedade de quem não tem diante de si mais que um deserto sem limites. A inexistência das lucubrações espirituais acarreta naturalmente a nulidade do trabalho espiritual depois da morte; e porque não lhe restem meios de saciar o corpo, nada restará para satisfazer o espírito.

Daí, um tédio mortal cujo termo não preveem e ao qual prefeririam o nada. Mas o nada não existe… Puderam matar o corpo, mas não podem aniquilar o espírito. Importa pois que vivam nessas torturas morais, até que, vencidos pelo cansaço, se decidam a volver os olhos para Deus. – negritamos

Na mensagem “Um Ateu”, apresenta-se um espírito suicida, cujo ato impensado decorreu de:

– O tédio de uma vida sem esperança.

Vemos novamente o vazio causado pelo materialismo, pois a esperança é também elemento básico do cristão, ao lado da fé e da caridade, como Paulo de Tarso nos ensina na 1ª Epístola aos Coríntios. Sobre essa trindade, vejamos comentário constante de O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX:

A fé: mãe da esperança e da caridade

…A esperança e a caridade são corolários da fé e formam com esta uma trindade inseparável. Não é a fé que faculta a esperança na realização das promessas do Senhor? Se não tiverdes fé, que esperareis? Não é a fé que dá o amor? Se não tendes fé, qual será o vosso reconhecimento e, portanto, o vosso amor?

Além da necessidade do trabalho, deve-se ter perspectiva para o amanhã, sendo que o materialismo, por decretar um ponto final à existência, mina, inevitavelmente, a razão da existência e de todos os percalços, ainda mais se se imaginar vidas que são quase de completo sofrimento.

Outro espírito, sob o título “Um Espírito Aborrecido”, traz a mesma temática:

  1. Por que permanecestes tanto tempo estacionário, sem que fôsseis condenado a sofrer?

— R. É que eu estava votado ao tédio, que entre nós é um sofrimento. Tudo o que não é alegria, é dor

  1. Qual poderia ter sido a causa desse aborrecimento de que vos acusais?

— R. Conseqüências da existência. O tédio é filho da inação; por não ter eu sabido utilizar o longo tempo de encarnação, as conseqüências vieram refletir­-se neste mundo.

  1. Os espíritos que, como vós, foram tomados de tédio, não podem libertar­-se de tal contingência desde que o desejem?

— R. Não, nem sempre, porque o tédio lhes paralisa a vontade…

  1. Podeis dizer­-me algo da vossa existência terrena?

— R. Oh! Deveis compreender que pouco me é dado dizer, visto como o tédio, a nulidade e a inação provêm da preguiça, que, por sua vez, é mãe da ignorância. – negritamos

Observamos aqui, na resposta à sexta pergunta, que o espírito atribui o tédio, a nulidade e a inanição à preguiça, que seria a “mãe da ignorância”.

Novamente a infringência à lei do trabalho, pois todo espírito, encarnado ou não, deve ser útil à criação, conforme retratado em O Livro dos Espíritos:

  1. A necessidade do trabalho é lei da natureza?

“O trabalho é lei da natureza, por isso mesmo que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais, porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.”

  1. Por trabalho só se devem entender as ocupações materiais?

“Não; o espírito trabalha, assim como o corpo. Toda ocupação útil é trabalho.”

Feita a breve digressão, podemos concluir que o tédio é um reflexo natural a todo espírito que não se propõe a cumprir as obrigações para com a obra divina. Deus não criou toda a natureza pronta, nem nos fez perfeitos. Generosamente delegou a nós a possibilidade de moldarmos sua obra conforme nosso feitio.

Contudo, muitos fogem ao trabalho ou, se trabalham, consideram apenas seu aspecto material. Nada fazem além do necessário à sobrevivência ou ao próprio deleite. Faltam com a caridade e jamais se sacrificam por outrem.

Mas Deus colocou em nós diversos chamarizes ao dever. Se no corpo físico a inércia pode levar a doenças que nos forçam a buscar atividade física, no campo moral, dentre outras coisas, o tédio se nos apresenta com sinal de que algo não está correto em nosso proceder.

Não há saídas externas. Não há remédios ou entorpecentes. Ao contrário, a fuga pode nos colocar em estado ainda mais grave, conforme os depoimentos de espíritos acima transcritos nos mostram. O corpo muito esconde, mas na pátria espiritual não há véus ou miragens.

Reflitamos sobre nossas vidas:
  • Andamos entediados?
  • Temos nosso tempo tomado por muitas atividades, mas sentimos um vazio, como Maria de Magdala?
  • Temos a consciência tranquila de que cumprimos mais que nossos deveres básicos?
  • Tenho cuidado com algo ou alguém além de mim ou da minha família?

Não desperdicemos a encarnação, sendo atentos ao que o profeta Isaías há milênios ensinou:

Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus pensamentos, e se converta ao Senhor, que se compadecerá dele; torne para o nosso Deus, porque grandioso é em perdoar. (Isaías 55:6-7)

Nessa jornada, não nos percamos em comparações tolas que nos exaltam, mas recordemos da lição do Mestre:

 Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. (Mt 5:20)

 

 

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