Por Sérgio Rossi

 

  1. Conhecer-se

 

Ao longo dos séculos, o tema tem motivado incontáveis manifestações de pensadores versados nos mais diversificados campos da cultura e da atividade humanas, multiplicando-se estudos, conceitos e interpretações sobre o empreendimento, sempre relevante, de conhecer a si mesmo.

Essa busca certamente retrocederia ao primeiro vivente que galgou a evolução necessária para se perguntar quem ele era, de onde viera, aonde iria e, particularmente, porque ele era do jeito que era.

Porém, será bastante o retorno ao quarto século anterior à era cristã, quando o lendário ateniense, polímata insuperável, ressaltou a centralidade da máxima estampada pelo famigerado oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”.

Sócrates elevou esse ensinamento a inefável patamar, a ponto de reconhecer que o único conhecimento inatacável que detinha era ausência de sabedoria: “só sei que nada sei”. A posteridade lhe fez justiça, demonstrando que a frase imortal, ao revelar-se inverossímil, somente lhe realçava a humildade irrepreensível.

Antecedeu-lhe a dedicação dos antigos egípcios, vindo, em todas as épocas e culturas, uma longa e honrosa seqüência de ilustres mestres estudiosos, que valorizaram e esmiuçaram, virtualmente, todos os aspectos dessa ciência inacabável e imprescindível; citem-se alguns, começando por Platão, discípulo do próprio Sócrates, incluindo filósofos medievais, Thomas Hobbes, no século XVII, Alexander Pope, Carl Linneu, Benjamin Franklin e Jean Jacques Rosseau, no século seguinte, Ralph Waldo Emerson e Friedrich Nietzsche, no século XIX, além de Allan Kardec, que elevou o tema além do foco terreno, sempre palpitante e hodierno.

Santo Agostinho, em sua última encarnação conhecida, participou dessa plêiade elogiável, e continua colaborando com sua sábia experiência, sob a liberdade contemplada pela vida espiritual.

 

  1. Aurélio Agostinho de Hipona: Santo Agostinho

 

Religioso, teólogo, filósofo, professor, o subtítulo exibe o nome que o identificava à sua época, quando era comum acréscimo de localidade marcante na vida do denominado, neste caso, a cidade em que Agostinho foi bispo até seu falecimento no ano 430, em território da atual Argélia, agora com o nome de Annaba; nascera 75 anos antes, em Tagaste, hoje Souk Ahras, no mesmo país.

Era, portanto, cidadão do Império Romano, de cuja decadência vivenciou o início; o pai fora convertido ao Catolicismo no leito de morte, e sua mãe foi canonizada como Santa Mônica, o que não impediu que o jovem Agostinho cedesse ao hedonismo dominante em sua geração, entregando-se a aventuras várias, pouco recomendáveis, inclusive no campo afetivo, mais propriamente na sensualidade um tanto permissiva. Desse período data sua evocação, irreverente e sugestiva: “Senhor, conceda-me castidade e continência, mas não ainda”.

Mais tarde, envolveu-se mais seriamente com uma moça cartaginesa, tornando-se pai de um filho que desencarnou aos 17 anos.

Pressionado pela mãe e pelo bispo de Milão, Agostinho inspirou-se na vida de um santo eremita, e finalmente converteu-se ao Catolicismo em 386, ao ouvir uma voz infantil pedindo-lhe que lesse a Bíblia, que lhe trouxe o texto seguinte, em Romanos 13:

Andemos honestamente como de dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não vos preocupeis com a carne para não excitardes as suas cobiças.

A tristeza pela morte da mãe e do filho teve o efeito de uma epifania, levando-o a vender todo patrimônio que possuía e doar o resultado aos pobres, ainda antes de sua ordenação como sacerdote em 391; revelou-se ardoroso defensor da fé cristã, tendo escrito mais de 350 sermões, em dedicada atuação para a conversão da população de Hipona, onde vivia como verdadeiro asceta, trabalhando muito, comendo pouco, rejeitando as conversas vazias e as tentações carnais, além do extremo rigor na administração financeira de seu bispado.

Ao desencarnar, consagrara-se como intelectual respeitado, dotado de retórica poderosa e consistente.

 

  1. Autoconhecimento

 

Esta biografia é sucinta, porém suficiente para compreender e exaltar o esforço inabalável e ininterrupto de Agostinho em reformar a conduta pessoal, reorientando a própria vida, até então em ócio lindeiro à devassidão, para assumir o aprendizado da fé, praticando-a incansavelmente até o fim da travessia terrena.

A reforma íntima, preconizada reiteradamente por Allan Kardec, constitui a correção e a superação dos erros outrora cometidos pelo ser decidido a conceder-se o direito à nova existência, produtiva, cristã e misericordiosa, demanda necessariamente que se os reconheça em sua trajetória pregressa; de modo pleno e abrangente, significa encetar a imarcescível análise da personalidade que lhe dominou a vontade desde sempre.

O tema tem sido sistemática e repetidamente focado em todas as eras e fases da evolução da sociedade humana, e os dias atuais não se mostram diferentes; ao contrário, a disseminação de meios de comunicação instantânea mantém-no em permanente exposição a qualquer interessado, muitas vezes, entretanto, resvalando, ou até mergulhando, em estudos e debates sobre autoajuda, por vezes bem intencionados, porém digressivos ante o sentido e a relevância transcendentais do autoconhecimento para o desenvolvimento emocional e espiritual do ser.

A literatura disponível é copiosa e diversificada, propiciando pesquisas, estudos e mesmo modelos em que pesem eventuais restrições quanto a profundidade e conteúdo, identificando-se alguns fatores característicos e determinantes para a busca do conhecimento de si mesmo: valores, crenças, medos, limitações, talentos, defeitos, gostos, preferências, necessidades, inclinações e comportamentos.

Valendo-se da Psicologia, podem elencar-se três grandes variedades de autoconhecimento, a saber, cognitiva, emocional e comportamental, dispensando-se maiores detalhamentos devido à clareza de cada denominação.

Completa a avaliação despretensiosa e rasante do esforço de autoconhecimento, em seu viés de terrena objetividade, uma lista de possíveis técnicas de sua consecução:

 

– seleção de tempo para si mesmo  

– seleção de profissionais qualificados

– procura de novas vivências e experiências

– questionamento de si mesmo

– gentileza para si mesmo

– reflexão sobre os rumos escolhidos

– conscientização de processo continuado

 

Prescinda-se novamente de pormenorização para garantir o distanciamento eficiente de processos de autoajuda, úteis e produtivos em cenários outros.

 

  1. Na Terra e na Espiritualidade

 

Agostinho viveu intensamente todas as fases de sua existência carnal, relativamente extensa para a sua época, experimentando extremos voluntários de materialismo, hedonismo e irresponsabilidade pessoal, mas também, e principalmente, um período contínuo, perene até o ocaso terreno, de sublimação, altruísmo, frugalidade, humildade e tantas virtudes mais, aspirações sempre presentes no cotidiano de quem se decidiu pela extirpação paulatina de suas imperfeições.

Essa admirável capacidade de experimentação indômita de oportunidades variegadas ao longo da vida, incluindo algumas inconfessáveis, talvez explique porque lhe foi atribuída a posição simultânea de padroeiro dos teólogos e dos cervejeiros; que se valorize, todavia, a sua determinação de apartar-se da impureza, assim que lhe percebeu a iniqüidade, substituindo três décadas de sobrevivência inconseqüente, até temerária, por 45 anos de plena vivência cristã, embevecido pelo exercício da fraternidade, da misericórdia, do amor ao próximo.

A partir de sua piedosa submissão aos princípios supremos do Cristianismo, Agostinho pautou o restante de sua estada na matéria pela absoluta obediência aos ensinamentos misericordiosos do Divino Mestre, empenhando-se irrestritamente na missão que toda criatura pode realizar somente para si própria, correspondente à superação de caminhos até então desatinados, volúveis, imprecisos e tortuosos, pela rota segura, direta, voltada exclusivamente à elevação espiritual.

O aperfeiçoamento de tudo que participa da natureza, nada importando o seu caráter material ou espiritual, exige que se investigue e determine o que estaria abrigando de imperfeito, passível de melhora, incluindo o agente principal dessa mudança, equivalente à parcela vivente, dotada de vontade e autonomia decisória.

Reconhecendo essa capacidade irrenunciável, o bispo de Hipona esmerou-se em apresentar ilimitado comportamento de respeito e beneficência a quantos pôde favorecer indistintamente; a síntese dessa atuação foi fornecida por ele mesmo, beneficiado pela clarividência que a libertação espiritual lhe proporcionou, endereçando à humanidade encarnada a lição magistral, imorredoura e insuperável, que constitui o atendimento à questão 919 de O Livro dos Espíritos, e que se reporta ao ditame que empolgou a filosofia existencial do sábio Sócrates:

 

  1. Qual o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?

 

“Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo.”

 

Ele detinha autoridade moral suficiente para emular a etapa mais louvável de sua última temporada na matéria, quando era amorosamente extrema a sua preocupação com o próximo, interrogando a própria consciência sobre a extensão e o efeito da prática do bem que intentara a cada jornada, debitando a imperfeição pessoal a responsabilidade pelo menor infortúnio, mesmo involuntário, que tivesse provocado.

A dedicação perfeccionista ao comportamento ético, sob a égide da caridade incondicional, era obsessiva, monopolizando a vontade, o pensamento e a ação do novo cristão até o fim, porém trazendo-lhe também reiteradas dificuldades ante os contemporâneos incomodados com a sua intransigente convivência com o bem e a não menos intensa intolerância com o erro.

Como espírito liberto, exortava o encarnado terreno a manter-se sempre preparado para o retorno ao mundo verdadeiro, devidamente ataviado do cabedal de virtudes que pudesse acumular, demonstrando o aproveitamento completo da oportunidade na matéria, sem equívocos de que se envergonhar.

Enfatiza a evitação escrupulosa de ações danosas ao próximo, a si próprio e a toda criação, portanto a vontade do Pai Maior; e define cabalmente o significado desse conjunto de procedimentos compulsórios ao homem de bem, declarando textualmente que “o conhecimento de si mesmo é a chave do progresso individual”.

Retorna ao conceito do autoconhecimento, colocando-o no centro das preocupações humanas pelo bem viver.

Por fim, exalta a ininterrupta tarefa de detecção e saneamento das máculas que remanescem em toda criatura espiritual emancipada, admitindo e reagindo positivamente aos comentários dos que lhe comungam a amizade, embora nem sempre capazes da avaliação sincera, mas também dos opositores, geralmente mais tendentes a apontar a verdade.

O mecanismo infalível consiste no constante interrogatório à própria consciência, analisando judiciosamente a natureza e a motivação de cada atitude.

 

  1. A Prática

 

O ensinamento de Hipona e também do Alto jamais se constrangeria ao enfoque filosófico, teórico, apartado do receituário realista habilitado a conduzir o discípulo bem intencionado na rota segura do escrutínio de si próprio.

Enaltecendo o processo transformador, a compreensão de si mesmo, Agostinho alcançava a necessidade de conhecimento paulatino da grandeza divina; estabeleceu destarte os passos, claros e objetivos, de cotidiana e descomplicada realização por todo espírito encarnado que se disponha a essa missão, a um tempo simples e grandiosa:

 

– listagem de todos atos do dia

– indagação a si mesmo sobre o bem e o mal praticados

– avaliação de motivações e circunstâncias de seus atos

– rogativa de ajuda ao seu anjo da guarda e ao Pai Maior

– admissão sincera de ações contra o próximo, Deus e a si próprio

 

À guisa de conclusão, talvez dispensável em face de toda ênfase aplicada por seu defensor, que, entretanto, não se furta a elencar os benefícios dessa introspecção corretiva ao seu executor consciente e honesto, é lícito enumerar:

 

– visão de suas qualidades e defeitos

– definição de metas e objetivos

– compreensão e tolerância com o próximo

– entendimento do propósito da vida

– identificação e controle do comportamento

– predomínio da virtude sobre a fragilidade

– exaltação das qualidades mais marcantes

– vivência terrena rumo à purificação moral

 

Antes e acima de tudo, Agostinho tem lecionado sua moralidade intransigente, conquistada na metade derradeira da existência terrena, pelo método mais efetivo que apenas os verdadeiros mestres empregam, a aplicação em si mesmos, o exemplo educativo e indiscutível.

 

  1. Palavras Finais

 

Agostinho de Hipona e sua obstinada dedicação ao conhecimento de si mesmo conduziram esta jornada, breve em pretensão e profundidade, na observação e entendimento da complexidade inescrutável da personalidade humana, percebendo que talvez ela não seja tão impenetrável assim.

Afinal, habitantes encarnados deste mundo, inumeráveis em quantidade e diversidade de pensamentos, filosofias, ciências e vontades, têm enfrentado honesta e humildemente o inadiável, ao menos para eles, compromisso de compreenderem a própria existência, expandindo indefinidamente o sentimento experimentado pelo primeiro ser que viu a própria imagem refletida, pela água ou outro efeito acidental, e percebeu, de modo surpreendente e perturbador, que não estava olhando para outro vivente.

Que se possibilite, portanto, esta finalização às palavras textuais do sábio convertido.

Em seu périplo filosófico, enriquecido pela internalização voluntária, ele exaltava o bem como única realidade positiva, relegando o mal ao uso indevido da liberdade, assumindo:

 

“Procurei o que é o mal, e verifiquei que não é substância, mas perversidade de uma vontade que se afasta da substância suprema, de Vós, meu Deus, na direção das coisas inferiores.”

 

Reiterava, certeiramente, que a busca de si mesmo equivalia à inevitável e insubstituível compreensão de seu papel como resultado do amor divino do Criador, destino único da evolução de cada criatura; em seu aclamado livro Confissões, ele prossegue:

 

Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus; é por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros.”

 

E cabe também a Agostinho a síntese do caminho para o autoconhecimento, expressão simples e direta de seu objetivo sincero:

 

É na memória que eu me encontro comigo mesmo, que me lembro de mim mesmo, as coisas que fiz, a época e do lugar em que as fiz, do que sentia ao fazê-las.”