Na instrução contida em O Evangelho Segundo o Espiritismo, com o título O orgulho e a humildade[1], o espírito Lacordaire inicia sua explanação rendendo graças a Deus: Bendito seja Ele pela graça que nos concede: a de podermos auxiliar o vosso aperfeiçoamento. Em seguida, solicita iluminação para tornar compreensíveis as próprias palavras e fazer brilhar a vontade de Deus.

Essas linhas iniciais do benfeitor podem facilmente passar despercebidas em nossa leitura, todavia, são a exemplificação do conteúdo que é abordado na orientação sobre o orgulho e a humildade. Lacordaire demonstra gratidão a Deus pela oportunidade de servir, reconhece não ser capaz de agir plenamente sem a conexão com a divindade e esclarece que não objetivava fazer a sua vontade, mas ser instrumento da vontade de Deus.

Isso porque a Lei de Deus é lei de cooperação[2]. Tudo no Universo é regido por essa lei, por conseguinte, todas as vezes que agimos de forma contrária, nos afastamos da vontade de Deus.

Muitos dentre os comportamentos contrários à lei de cooperação têm como matriz o orgulho e o egoísmo, chagas da humanidade. No primeiro, sentimo-nos superiores aos outros, detentores de características especiais, capazes de agir e pensar com mais perfeição. Acreditamos estar num patamar acima daqueles que nos circundam, tendo, pois, muita facilidade para visualizar as falhas alheias, mas cegos para as nossas vicissitudes íntimas.

De forma complementar, o egoísmo nos leva a agir como se tudo girasse em torno de nós. Falta-nos tempo para escutar o problema alheio e servir ao próximo, porque estamos muito envolvidos com questões pessoais. Possivelmente, se gravássemos nossas falas durante o decorrer de um dia inteiro, perceberíamos um número elevado de vezes em que o “eu” esteve presente nas sentenças proferidas em detrimento do “nós” ou do “outro”.

Vale ressaltar que existem graus de expressão dessas duas chagas, ainda entranhadas no coração da humanidade. Podemos não nos identificar com exemplos mais caricaturados, nos quais fica nítida a presença de ambos. Todavia, numa análise mais sincera e detida de situações cotidianas, é possível notar que queremos estar sempre com a razão e ter a palavra final ou sentimos dificuldade em compartilhar nossos pertences.

São inúmeros os exemplos que remontam a esses dois aguilhões. O fato é que, em todos eles, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos consciente, nos esquecemos de ser gratos, de servir, de aprender com as experiências e de aceitar o auxílio que chega até nós.

No livro Paulo e Estevão[3], o espírito Emmanuel informa que uma das finalidades da obra era reconhecer que Paulo não seria o grande apóstolo que apreciamos em ação isolada no mundo: Sem Estêvão, não teríamos Paulo de Tarso. (…) A contribuição de Estêvão e de outras personagens nessa história real vem confirmar a necessidade e a universalidade da lei de cooperação”.

Foi o próprio apóstolo da gentilidade quem afirmou em sua epístola aos Romanos[4]: … pois eu me sinto devedor a gregos e a bárbaros, a sábios e a ignorantes. Para que chegássemos a este momento atual de nossa evolução, quantos espíritos nos auxiliaram por meio das reencarnações? De quantos corpos materiais já dispusemos? Quantos recursos tem a divindade nos ofertado?

Se tivéssemos acesso ao conteúdo dos nossos débitos, seria por certo uma conta impagável. Não se trata, entretanto, de um cálculo matemático com créditos e débitos. Trata-se, em verdade, de um Pai amoroso que nos solicita apenas o que temos para ofertar, que nos convida diariamente ao serviço iluminativo, exemplificando a cooperação incessante entre os seres da criação mediante a natureza que nos cerca,.

Mas o que fazer? Por onde começar? São questões que se impõem quando olhamos para nós mesmos e percebemos arestas que necessitam de lapidação. Entre o insight cognitivo acerca das características pessoais disfuncionais e a real transformação moral, há certa distância. O espírito Joanna de Ângelis, no capítulo Defecções morais, do livro Momentos de Harmonia, assevera que não raro, sempre que o homem bem-intencionado formula programas de edificação renovadora e de elevado alcance espiritual, acontecem-lhe insucessos e problemas com os quais não contava. [5]

Ao percebermos quão difícil se faz a renovação de emoções, pensamentos e comportamentos, quão facilmente retornamos aos condicionamentos do orgulho e do egoísmo, poderemos nos sentir incapazes de aceitar o convite celeste para o empreendimento da ascensão espiritual. Poderemos cogitar que, para ofertar nosso quinhão de cooperação com a obra divina, precisamos, antes, nos transformar moralmente.

Não obstante, poderemos também formular o raciocínio em outra direção. Em vez de esperarmos um patamar superior de evolução para cooperar, é exatamente por intermédio da cooperação que trabalhamos as fibras da nossa alma. Essa lei universal, nesse caso, seria um caminho, não apenas um objetivo.  

O médium Chico Xavier nos legou a seguinte lição: Se eu fosse esperar melhores condições espirituais para servir, até o presente momento, não teria começado.[6] Servir, portanto, constitui etapa relevante do nosso roteiro de crescimento. Qualquer um no mundo tem algo para ensinar e aprender, no local onde se encontra, com os recursos materiais e espirituais que tenha haurido.

À medida que cooperamos e nos permitimos errar, que ajudamos e aceitamos ser auxiliados, que travamos contato com dores maiores que as nossas, com exemplos de superação e de perseverança, deixamos de esconder de nós mesmos as defecções morais e passamos a trabalhá-las verdadeiramente. De forma, talvez, não tão rápida quanto gostaríamos, porém verdadeira e profunda.  

Ao assim procedermos, sentiremos intimamente o quanto há para agradecer, como consequência, renderemos graças pela oportunidade de servir, conforme fez Lacordaire.

A vida, em si mesma, é um hino de louvor à vida, portanto de gratidão incontida[7], diz-nos a veneranda Joanna de Ângelis. Vibrem os nossos dias em consonância com as sutis melodias do sentimento de gratidão e do serviço de cooperação com Deus. 

 

[1] O Evangelho Segundo o Espiritismo/ Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro da 3ª ed. francesa] – cap. VII, item 11 – Brasília: FEB, 2013.

[2] Nota da Revista – Na Parte Terceira de O Livros dos Espíritos – Das leis morais, não há definição da Lei de Cooperação. Contudo, tal cooperação, que ocorre desde as combinações subatômicas da matéria bruta, é evidente na Obra Divina. O próprio Espírito de Verdade, ao responder à questão 648 de O Livro dos Espíritos, nos diz, sobre a divisão em dez leis morais propostas por Kardec: “Podes, pois, adotá-la, sem que, por isso, tenha qualquer coisa de absoluta, como não o tem nenhum dos outros sistemas de classificação, que todos dependem do prisma pelo qual se considere o que quer que seja

[3] Paulo e Estêvão / pelo Espírito Emmanuel [psicografado por]  Francisco Cândido Xavier – Introdução – Brasília: FEB, 2013.

[4] Romanos 1:14.

[5] Momentos de Harmonia /pelo Espírito Joanna de Ângelis; [psicografado por] Divaldo Pereira Franco – Salvador – BA: LEAL, 2007.

[6] O Evangelho de Chico Xavier. Carlos A. Baccelli. Casa Editora Espírita Pierre-Paul Didier, 2000.

[7] Psicologia da Gratidão pelo Espírito Joanna de Ângelis; [psicografado por] Divaldo Pereira Franco – Salvador – BA: LEAL, 2011.

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