Por Sérgio Rossi
29/09/2020 • 15:10
O mês de setembro ganhou cor e objetivo, para que valorizemos o valor que não tem preço, mas alguns desvalorizam…
Inegável é, todavia, que o enredo se mostra ingrato para o descrente, porque a sua posição moral jamais servirá de consolação: elevada, sentirá que seu comportamento humano e generoso não lhe trará benefícios, além do bom conceito, eventualmente reconhecido, pois nada levará para o … nada; reduzida, explicará a postura impiedosa, egoísta e interesseira, no mínimo, irresponsável, na certeza de nenhuma conseqüência duradoura.
Vicejando entre a virtude inconseqüente e o hedonismo infrene, a opção pela matéria implica a tarefa hercúlea de justificação da vida, exigindo inabalável convicção ou absoluto descaso. Entretanto, Platão nos socorre: “um grão de filosofia dispõe ao ateísmo; muita filosofia reconduz à religião”.
Por sua vez, outros irmãos, já sensíveis à busca de melhor compreensão do significado de sua presença na Terra, pressentem a indefectível ação de um poder superior, que assuma o protagonismo da criação, pelo menos, e a condução das criaturas, por extensão. A conseqüente percepção da condição de filho, ou sentimento similar sob nomeação diferenciada, consolida a atmosfera religiosa e protetora, ao encontro da vontade interior e profunda, ainda que, por vezes, pouco consciente.
Essa sensação, agradável e desejada, faz-se acompanhar pela necessidade de comportamento compatível, subordinado ao desígnio superior, facilitando a admissão de que o bem mais precioso consiste em dádiva, ou concessão, de um ente poderoso e inescrutável, a ser defendida sob qualquer circunstância, sob o risco de violação à vontade divina.
As grandes religiões do mundo, em extensão, influência e poder, e a maioria das menores, evolvem ao sabor desse mecanismo direto de submissão e recompensa, reconhecidamente afirmativo e benéfico à difusão e prática das grandes virtudes e à contenção dos vícios, eivado, porém, de evidente fragilidade na interpretação do sentido verdadeiramente transcendental da existência, pois admite a senda da destruição ao artífice da criação, quando exclui, dos eleitos ao céu eterno, os desobedientes devidamente estigmatizados ao sofrimento infindo.
Constrangidos à oportunidade única, irrecorrível e fugaz, sob um comando implacável, tão humano quanto imperfeito, mas aceito como divino, o crente sincero precisa absorver a verdade dogmática, substituindo o questionamento esclarecedor pela subordinação temerosa.
Entretanto, as doutrinas espiritualistas trazem esperanças mais consistentes, ao propugnarem a perenidade da vida, proporcionada por sua reiterada manifestação em inumerável diversificação, embora o aproveitamento dessa condição acabe submetendo-se ao restrito discernimento humano, passível de admitir necessária a satisfação da suposta vontade divina por meio de rituais, oferendas, sacrifícios e outras atitudes distorcidas; igualmente deletério é o matiz fatalista que a religiosidade popular empresta à utilidade e, principalmente, ao destino da vida material, cujo efeito mais visível é o conformismo imobilista, que buscaria motivos em vidas anteriores, abismando a sociedade em cruel mecanismo de castas e costumes.
Em tal cenário, a defesa intransigente da travessia terrena certamente é comprometida pelo enfrentamento da existência difícil, piorada por mortificações e limitações inúteis à elevação espiritual e nocivas à serenidade e à segurança, necessárias garantidoras da evolução verdadeira.
Que o Espiritismo se abriga nas vertentes do Espiritualismo é pacífico, contudo não são poucos os que concordam também com o contrário, estabelecendo destarte uma correspondência biunívoca, de inadvertida e plena equivalência, pelo que incorrem em equívoco notório, promovendo a simplificação restritiva dos conceitos e valores mais significativos da doutrina codificada por Kardec.
Com efeito, os sublimes fundamentos do Espiritismo apóiam-se na realidade de matéria e espírito, neste universo avesso à perfeição, sob a égide do único ente perfeito; incapaz, portanto, de qualquer ação inferior ao amor absoluto, o Pai, somente Ele, é eterno porquanto incriado, e não poderia dar à sua manifestação nada menos que a imortalidade, conseqüência do amor infinito, que não admite o sofrimento para a criatura, exceto para a sublimação redentora de regresso à sua presença.
Em nosso mundo, como nos demais, a vivência carnal representa o estágio insubstituível de aprendizado e remissão de falhas, por vezes incrustadas durante eras, peso indisfarçável que o espírito não pode arrastar indefinidamente. Conquanto não regrida, a estagnação moral equivale a desperdício inaceitável de tempo e recursos adrede orientados às necessidades e aos objetivos de cada experiência na matéria.
O amor absoluto não priva nenhuma criatura de benefícios e virtudes uma vez adquiridos por seu esforço e mérito, destacando-se rutilante a capacidade de tomar decisões sobre si própria, o livre arbítrio soberano e insuperável, apanágio irrenunciável do espírito emancipado para a racionalidade, cabendo-lhe, irrefutável, a missão de bem aproveitar, valorizar e preservar cada existência concedida pela bondade de Deus, a quem cumpre, exclusivamente, determinar a duração e o termo que aprouverem aos seus desígnios.
Além disso, o ditame bíblico exalta que, sem o escrutínio divino, nada acontece a um fio de nosso cabelo, tampouco no universo inteiro, o que não intenta demonstrar que nossos atos volitivos sejam obstados por interferência do Pai Maior, porém que serão sempre acompanhados e considerados pela vontade superior, de tal modo que acarretem conseqüências positivas no contexto da vida eterna, ainda que, sob nossa concepção sensorial e temporal, soframos do imediatismo que nos encapsula estreitamente o discernimento.
Desse modo, a dor próxima parecerá quase sempre maior e mais relevante que o benefício futuro ou mediato, pois a compreensão dos efeitos ainda insuspeitados exige um alto grau de resignação e confiança nos espíritos superiores que nos orientam, sob as diretivas divinas, trabalhando para que sejam recompensados, invariavelmente, pelo nosso crescimento moral, de tal modo que não nos advirá a satisfação de nosso desejo, mas o atendimento à nossa necessidade, sucessos que não coincidem necessariamente.
Portanto, os acontecimentos de nossa existência terrena não são fortuitos, não ocorrem sem motivação e não prescindem de objetivo, embora quase nunca os enxerguemos; mas, a nossa compreensão estaria duplamente favorecida se nos ativéssemos à lógica irrepreensível de Kardec.
Assim, se admitimos que não existe efeito sem causa, aceitemos igualmente que nada nos atingirá ao acaso, sem que resulte de eventos anteriores, ainda que os desconheçamos por obra do esquecimento temporário e piedoso que nos agracia a travessia material; do mesmo modo, não ignoramos que a toda ação sobrevém uma reação, outra lição do mestre lionês, a nos esclarecer que todos os nossos atos são passíveis de reconhecimento e retorno, concreta manifestação do que a cultura humana chama de “efeito borboleta”.
Nunca esqueçamos a pequenez de nossas concepções, limitadas por sentidos rudimentares, que nos sujeitam a superestimar o que sofremos e a desdenhar o que cometemos: a dificuldade atual pode parecer insuportável, mas sua intensidade e duração guardam conformidade às nossas imperfeições e carências, atacando-as com precisão saneadora; e nossa atitude hodierna jamais será inconsequente, podendo alcançar paragens ignotas, de onde regressará à origem, conquanto misericordiosamente atenuadas pela compaixão onipresente.
Nosso planeta é visto como uma escola severa, metáfora que também explica a resistência mais intensa nos estágios iniciais da penosa reeducação espiritual, a exemplo da criança que sente a alfabetização como um processo interminável, mas enfrenta o ensino superior com menor dificuldade, trazida pela melhor compreensão de necessidades e objetivos, apesar do tempo demandado.
Assim, também o ser encarnado, à medida que se espiritualiza, tem ampliado o seu discernimento, a ponto de aceitar, com decrescente resistência, a desproporção caridosa que caracteriza o paralelo entre uma existência terrena e a eternidade que espera toda criatura divinamente emanada, cenário em que o tempo e as vicissitudes na matéria, uma vez atingida a sua finalidade, perdem a significância.
Tampouco nos cabe desconhecer que os amigos espirituais não recusam, aos encarnados dispostos a ver e ouvir, a informação certeira no momento azado, enaltecendo que esse processo de expiação e retomada tem a nossa participação efetiva, bem distante da aparente passividade que nos isentaria de responsabilidade; opondo-se a essa acomodação, o espírito estará presente, no intervalo entre as encarnações, no planejamento da estada planetária seguinte, ajudando a definir os principais eventos que lhe marcarão a vida material, voltados sempre para o aprendizado e a superação dos erros retardadores da moralidade.
Não subsiste qualquer resquício de fatalismo, a biografia terrena do futuro reencarnante não estará, de modo algum, previamente definida, achando-se, porém, programadas as situações propícias à aquisição de conhecimento e experiência, e caberá ao espírito o protagonismo suficiente para decidir-se pelo aproveitamento ou desperdício dessas oportunidades; a espiritualidade superior não impõe expiações, menos ainda cenários punitivos, respeitando até mesmo a recusa do espírito ao estágio instrutivo, já que, no mais das vezes, quando se permitem interferir, atuam preventivamente para evitar provas a que certamente o interessado não estaria preparado, embora desejoso de acelerar a sua recuperação ante o imenso constrangimento pela recordação de seus equívocos passados.
Recorrendo à consagrada expressão corporativa, retornamos à Terra com trilhas para a nossa passagem, jamais trilhos, pelo que o livre arbítrio se mantém intato, bem como a nossa responsabilidade pelas opções acertadas; fica assim completamente ultrapassada a desculpa canhestra de que não se pediu para nascer: apenas suplicou…
O nobilitante enredo ora descrito enfatiza a importância de cada existência carnal, etapa imprescindível para a vitória do espírito sobre seus percalços pretéritos, o qual precisa retornar à matéria, sob provisório esquecimento que lhe comprovará a pureza de propósitos, evitando a recaída pela convicção fortalecida no bem. Não lhe assiste desistir, escolha inviável, correspondente à fuga de si mesmo, sendo implacável o reencontro com a consciência que lhe recordará a extensão de suas falhas, agora incrementadas.
O regresso à Terra é uma dádiva inefável do Criador, que acredita na intenção redentora de cada filho amado, contemplando-o, se apto, com a justa oportunidade, mecanismo da sublime eleição do Pai que jamais sujeitaria qualquer criatura ao drama que lhe superasse a capacidade; querendo fugir às efêmeras vicissitudes da matéria, o espírito estará exibindo a sua ingratidão ante misericórdia divina.
Ao espírita, a gravidade de tal equívoco é inaceitável, porque sabe que o único destino plausível será a felicidade decorrente da evolução incessante, pela absorção da sabedoria universal; essa lei inflexível cobrará alto preço, se ignorada, pois o desvio equivale ao desperdício da vida, promovida por empréstimo generoso de que todos deverão prestar contas.
Além de tudo, entretanto, acima de qualquer consideração religiosa, filosófica e mesmo científica, deve-se tratar a vida como o único valor absoluto, que se sobrepõe aos demais, defensável, portanto, em qualquer circunstância, por extrema que pareça.
A relativização desse valor superior, sob pretextos diversos – piedosa interrupção do sofrimento, preservação da honra ofendida, heroico desprendimento de si mesmo, justiça – pode merecer o reconhecimento da plateia inadvertida e insciente, valor que não terá sustentação alguma, uma vez que, a eventual e surreal superação do absoluto arrastará à dissolução todo o restante: se a vida for dispensável, ao vento volúvel do arbítrio humano, tudo mais se desvanecerá e não compensará o apego à existência desprovida de finalidade.
Esse esvaziamento incentivaria a adoção de outros procedimentos igualmente nocivos, impiedosos, refratários ao crivo do senso superior, que transcende a matéria, encadeamento válido, ao menos, para aqueles que não a tem como a soma de tudo; similarmente danosos ao suicídio alinham-se o aborto, a eutanásia e a pena de morte, com o seu ignominioso cortejo de assassinato e eugenia; a existência não nos pertence, menos ainda a do próximo.
A vida é divina, o suicídio não a extingue, apenas exacerba a necessidade e o rigor de suas lições, que voltarão ao filho necessitado quantas vezes for necessário, porque o Pai não economiza o seu amor, tão infinito e eterno quanto Ele, mantendo-nos sempre na esperança de encontrar o caminho da perfeição e percorrê-lo com nosso esforço e perseverança.
Que deixemos de ser estudantes relapsos de seus ensinamentos imortais; o Grande Mestre é paciente e aguarda confiante a nossa disciplina.