Por Alexandre Assis

 

 

Em 1854, Allan Kardec, com cinquenta anos de idade, membro ilustre da sociedade e com vasto saber em diversas áreas do conhecimento, teve seu primeiro contato com o fenômeno conhecido como “as mesas girantes”, em que as pessoas se reuniam em volta de uma mesa e aguardavam que esta se “comunicasse” por meio de movimentos circulares. Sua análise inicial apontou o magnetismo como causa. Foi uma reação normal, tendo em vista que nós, seres humanos, tendemos a buscar as explicações para o desconhecido primeiramente em nosso universo de conhecimento. Kardec conhecia o magnetismo.

Tudo ainda era muito novo, e as investigações, embrionárias. Após ouvir de um senhor chamado Fortier ser possível fazer as mesas falarem, Kardec ficou relutante e disse querer provas, chegou até mesmo a afirmar que se tratava de um “conto para fazer-nos dormir em pé[1]. Essa seria outra reação normal; afinal, onde vemos mesas se comunicando por aí?

Kardec, no entanto, não estava diante de pessoas frívolas e desocupadas. A intenção daqueles que o acompanhavam era nobre e o caráter deles servia como uma validação para não deixar o assunto simplesmente cair na vala do ridículo sem antes ter um mínimo de atenção. O senhor Carlotti, entusiasta dos fenômenos, disse, mais tarde, que Kardec se tornaria um deles. A resposta de Kardec foi simples: “veremos mais tarde”. Por que essa resposta é digna de menção? Seria pelo fato de Kardec ter se dobrado às evidências logo em seguida? Para dizer que até Kardec duvidou? Ou para mostrar que todos que duvidam se seguissem o caminho da investigação terminariam convertidos? Nada disso! Acima de qualquer coisa, o que vemos aqui é uma abertura, uma predisposição, uma possibilidade. Kardec poderia ter dito um não seco; dito jamais ser capaz de abraçar tal causa; poderia ter afirmado ser  um teatro para entreter os tolos; ou mesmo se tratar de um embuste para ludibriar desavisados.

E por que isso é importante? Porque para investigar o desconhecido, embora tenhamos nossos preconceitos e seja difícil nos livrarmos deles rapidamente, precisamos ter a mente aberta para o novo, e Kardec demostrava essa característica desde o princípio. Tão logo iniciou os estudos de forma séria, ele não elaborou nenhuma teoria preconcebida, ou seja, poderia ter especulado, com base no que via, e depois buscado a confirmação. Ainda que tivesse suas opiniões para si, cuidou por não deixá-las macular o trabalho em curso. Lançou mão do método experimental e só admitiu explicações que resolviam “todas” as dificuldades em pauta. Isso seria suficiente para resolver todas as questões? Não, e nem ele teve essa pretensão. Esforçou-se em abraçar o maior número de dificuldades, mas isso não significa perfeita resolução.

Você poderia se perguntar: mas e se passou alguma coisa despercebida, como proceder com as eventuais incongruências? Vinda alguma resposta do campo científico demonstrando que algo no Espiritismo se encontra equivocado, não há por que se agarrar ferrenhamente a esse ponto. Kardec é claro: deve-se ficar com a Ciência. Por que ele diria isso? Ora, se a Ciência trouxer provas, significa ter ela feito a investigação adequada, com métodos compatíveis[2]. Em todo caso, devemos nos alegrar com o fato de mais um fragmento da verdade ter se aberto para nós.

Após um ano da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Kardec afirmou que a finalidade daquela instituição – e consequentemente das pessoas que ali se encontravam, incluindo ele próprio – era a de produzir “estudos e de pesquisas, e não uma arena de propaganda[3]. Eles desejavam a propagação das ideias professadas apenas por julgá-las úteis. Façamos então a distinção: julgar útil é algo bem distante da busca pela conversão e da imposição. Propagar o Espiritismo não é equivalente a uma fábrica de prosélitos. A intenção de Kardec era a de propagar o conhecimento e fazê-lo acessível ao maior número de pessoas para que cada um julgasse por si e tomasse suas decisões com consciência livre. Mas ele precisava de um mecanismo de segurança atrelado às suas investigações para assegurar a veracidade da informação colhida. E aqui entra a  Ciência, o caminho mais seguro para se encontrar respostas. Todavia, o sucesso da investigação sempre se dará pela escolha adequada do método (como será feita); e, antes disso, pelo estabelecimento preciso da pergunta que se quer responder (definição clara do problema).

Investigação científica

Abramos aqui um parêntese para discutirmos alguns aspectos básicos da Ciência, deixando clara, antes de mais nada, a intenção de este artigo não ter a epistemologia como escopo. Dito isso, vamos a eles: toda pergunta bem formulada tem em si parte da resposta, porque situa (orienta) o investigador, dando-lhe um ponto de partida e também a noção da chegada. A pergunta não é tudo: como iremos resolvê-la é outro aspecto fundamental. Diante de um problema, o ser humano busca a solução, tentando, errando, reavaliando o erro e progredindo com ele, fazendo novas tentativas e assim sucessivamente até estar satisfeito com o resultado obtido. Nesse percurso, ele pode se utilizar de várias ferramentas, percorrer diversos caminhos. Nenhum assunto fica completamente encerrado, porque novos olhares sempre poderão ser lançados, tornando possível a alteração do status quo. Entretanto, durante os estudos é comum nos valermos de definições para darmos a todos a clareza do que queremos dizer ao nos referirmos a um dado tópico. Isso tem por vantagem permitir que todos “falem a mesma língua”. Existe, contudo, o problema de toda definição ser obviamente a restrição dada àquilo que é definido. Tomemos como exemplo uma das questões mais conhecidas de O Livro dos Espíritos, a número um[4]: Que é Deus?

Quando nos deparamos com esse questionamento temos uma orientação clara do que o investigador deseja saber. E temos, também, uma orientação de destino, por mais que desconheçamos, de pronto, a resposta (até mesmo porque se soubéssemos a pergunta seria desnecessária). Por exemplo: ninguém vai se ater a conhecimentos sobre culinária, robótica, botânica, marcenaria para responder a essa pergunta. Por outro lado, os aspectos religiosos e filosóficos fazem mais sentido e chamam mais a atenção por ser Deus um assunto debatido nessas duas esferas há milênios. Por mais que não saibamos que seria Deus, sabemos muitas coisas que não podem ser Deus. E por mais óbvio que isso possa parecer, só conseguimos essa transparência a partir de uma formulação adequada do problema que buscamos responder

Poderemos investigar documentos antigos em busca de respostas, mas há de se concordar que o que alguém escreveu sobre o que seria Deus não faz  necessariamente Deus ser aquilo. Agora, se todos escreveram a mesma coisa (ainda que com termos diferentes), então estaremos em um caminho promissor. Problemas surgirão todas as vezes que nos dedicarmos a encontrar uma resposta, mas servirão para demonstrar progresso e oferecer novos elementos ao nosso repertório intelectual, ajudando-nos a clarear  ainda mais a nossa abordagem. Por exemplo: mesmo havendo vasto material sobre o assunto, há a possibilidade de termos muitas incongruências e contradições, sem contar a existência de meras opiniões de pensadores que se dedicaram a refletir sobre o assunto e acharam lícito compartilhar seus raciocínios, sem que por isso tenham provas a respeito.

Ora, e se os textos disponíveis nos mostrarem apenas as opiniões pessoais, mas não nos derem uma forma (caminho) para encontrarmos por nós mesmos? Então aquele conteúdo não pode ser considerado científico. Isso não quer dizer que seja um conteúdo inverídico ou fraudulento. Mas a Ciência tem por base a capacidade de replicação dos passos anteriormente trilhados para ensejar o encontro de resultados muito próximos (ou iguais). E se o resultado for diferente? Outro passo terá sido dado e mais investigações serão requeridas. E se tiver sido igual acabou a investigação? Não, apenas deu mais robustez àquele método.

Só até aqui já percebemos não ser algo tão trivial. Voltando à questão: como então poderíamos definir Deus? O que precisamos saber para chegarmos a uma resposta capaz de sanar todos os problemas que orbitam essa questão? A dificuldade não está em achar respostas, porque essas poderiam ser abundantes e inúteis ao mesmo tempo. Sabemos bem que não é qualquer resposta que satisfaz uma pergunta e ainda é capaz de enfrentar outras perguntas derivadas da inicial (desdobramentos) sem perder sua viabilidade e capacidade de solução. Como assim?

Suponhamos a seguinte resposta para aquela pergunta: Deus é luz. Estamos diante de uma resposta, mas ela, além de insuficiente, está equivocada. E podemos dizer isso com segurança, mesmo ainda não sabendo o que é Deus. Explico: luz é uma onda eletromagnética que pode vir de fontes artificiais ou naturais. Apenas com essa informação já podemos demonstrar o ponto de vista anterior. Deus estaria circunscrito (limitado) ao universo das ondas eletromagnéticas, de onde poderíamos pensar na propriedade partícula-onda  (dualidade onda-energia), nos atendo apenas ao aspecto material, se Deus fosse matéria estaria sujeito às alterações materiais e por isso perderia qualquer caráter de imutabilidade e de absolutismo. Só esse argumento já invalida a resposta. E por mais que possamos dizer Deus ser luz de forma poética para simbolizar que Ele traz claridade para nossa vida, ilumina nossos caminhos, a definição não é correta. Esse é apenas um exemplo simples para ilustrar o fato de não ser qualquer resposta digna de ser ser levada em consideração ou que encerre em si credibilidade e suficiência.

Assim, percebemos já na primeira questão uma dificuldade, que facilmente pode nos fazer incorrer em erro. Tudo o que sabíamos até aquele momento estava no campo do material. Bastava Deus estar fora desse escopo e nossos esforços seriam em vão. Contudo, estávamos diante de novos fenômenos e estes fenômenos demostravam inteligência e capacidade de raciocínio por vezes acima da média ou mesmo muito superior a ela. Parecia uma boa ideia submeter a essas inteligências questões com as quais nos debatíamos por muito tempo e ver se elas seriam capazes de nos lançar alguma luz. Mas, mais do que isso: vermos como seria essa luz.

Aspecto científico do Espiritismo

Você poderá argumentar – e se você chegou até aqui e conhece um pouco o Espiritismo é de se esperar ter surgido tal curiosidade – mas Kardec ao perguntar para os Espíritos e obter deles uma resposta, estaria enquadrado na Ciência? Não seria apenas a opinião desses Espíritos?

Pode parecer meio óbvio hoje, depois de já conhecermos a história, mas uma das primeiras constatações de Kardec foi a de que aquelas inteligências que se expressavam por meio das mesas girantes correspondiam, na verdade, a pessoas já desencarnadas. Isso sinalizou a existência de vida após a morte e a possibilidade de intercâmbio entre os planos. Por si só, tal informação é capaz de mudar o curso da história. Existe um porém: pessoas têm opiniões; opiniões podem estar erradas; logo pessoas podem estar erradas em suas opiniões, transmitindo-as ou não. Isso abre campo para debate, afinal como eu vou ter certeza? Pessoas podem mentir, como saberei não ser mentira?

Os seguintes questionamentos podem nos auxiliar a responder a essa pergunta, muito comum, inclusive: se muitas pessoas falarem a mesma coisa em locais diferentes,  simultaneamente, sabendo de antemão ou não de uma dada situação, isso soaria suspeito? Se as respostas viessem simultaneamente de locais como Lyon, Bordeaux, Constantinopla, Metz, Bruxelas, Sens, México, Carlsruhe, Marselha, Toulouse, Mâcon, Sétif, Argel, Oran, Cracóvia, Moscou, São Petersburgo, Paris, como de fato vieram, tornaria o assunto digno de análise ou seria facilmente contestável?[5]

Segundo Kardec,

O Espiritismo, sem dúvida, é uma ciência de observação, mas talvez ainda seja mais uma ciência de raciocínio; e o raciocínio é o único meio de fazê-lo progredir e triunfar de certas resistências… Fazendo entrar o Espiritismo no caminho do raciocínio, nós o tornamos aceitável para aqueles que querem conhecer o porquê e o como de todas as coisas…[6].

Para conhecermos o porquê das coisas, surge a necessidade de se trazer a autoridade da fonte que nos revelará a motivação; caso contrário, qualquer avanço no conhecimento se encontraria em risco de cair no ridículo ou simplesmente de não se sustentar no tempo. A autoridade do Espiritismo se dá por meio do controle universal do ensino transmitido pelos Espíritos, pautado essencialmente na concordância. Em outras palavras: uma informação de dada fonte pode ser verdadeira, mas não nos precipitamos em aceitá-la de primeira, antes precisará ser avaliada cuidadosamente, aguardando confirmação no tempo certo. Já quando há várias fontes sérias dando a mesma informação, elas tendem a convergir para a verdade, aumentando a confiabilidade dessa informação. Racionalmente, Kardec sobre o controle do ensino dos Espíritos apresenta a seguinte lógica:

Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo…[7]

E a argumentação vai mais além:

Contestareis o valor desse mesmo ensino universal pela razão de que os Espíritos, não sendo mais que a alma dos homens, estão igualmente sujeitos ao erro? Mas estaríeis em contradição convosco mesmo. Não admitis que um concílio geral tenha mais autoridade que um concílio particular, porque é mais numeroso? que sua opinião prevalece sobre a de cada padre, de cada bispo, e mesmo sobre a do papa? Que a maioria faz lei em todas as assembléias dos homens? E não queríeis que os Espíritos, que governam o mundo sob as ordens de Deus, também tivessem os seus concílios, as suas assembléias? O que admitis nos homens como sanção da verdade, recusais aos Espíritos? Então esqueceis que se, entre eles, os há inferiores, não é a esses que Deus confia os interesses da Terra, mas aos Espíritos superiores, que transpuseram as etapas da Humanidade, e cujo número é incalculável? E como nos transmitem as instruções da maioria? É pela voz de um só Espírito, ou de um só homem? Não, mas, como disse, pela de milhões de Espíritos e milhões de homens. É num único centro, numa cidade, num país, numa casta, num povo privilegiado como outrora os israelitas? Não: é em toda parte, em todos os países, em todas as religiões, em casa dos ricos e em casa dos pobres. Como queríeis que a opinião de alguns indivíduos, encarnados ou desencarnados, pudesse prevalecer sobre esse conjunto formidável de vozes? [8]

Evidentemente não traremos tudo o que Kardec escreveu a respeito do tema. Nossa proposta é mais sintética, com objetivo de chamar a atenção para esse tema, porque, muito embora Kardec não tenha economizado na discussão, ainda hoje vemos os mesmos argumentos de contradição sendo levantados como se tivessem nascido agora. Alguns deles são oriundos de cientistas, conhecedores dos métodos de investigação e da filosofia por trás da busca pelo conhecimento. Eles e tantos outros esbarram na alegação de o Espiritismo não ter nada de científico, por não seguir os protocolos de segurança conhecidos para obtenção do conhecimento.

No Espiritismo, o caráter científico está fundado na mediunidade. Mas é fácil fazermos confusão com isso, crendo que qualquer coisa proveniente da mediunidade seja ciência. Kardec perguntou aos Espíritos e eles responderam (só essa possibilidade encerra em si um avanço sem precedentes). Não devemos tratar como verdade científica a resposta a todas as perguntas. O caráter científico vem muito antes da resposta e se estende para depois dela. Se algumas condições (requisitos) não forem atendidas seria o equivalente a se perguntar para uma porta e depois dizer ser uma fraude quando a resposta não for obtida.

Para fazermos investigações sérias a respeito do Espiritismo e mergulharmos nos ensinamentos que podemos obter a partir de seus exercícios, devemos nos ater a alguns pontos (não figuram a seguir um rol taxativo, mas exemplificativo):

  • A presença de médiuns confiáveis para dar segurança de que o teor das mensagens seja natural, espontâneo e honesto (com isso teremos atendido a alguns requisitos: a evidência da mediunidade, pessoas hábeis a exercê-la, certeza de não haver atos de má-fé)[9];
  • Propósitos reais e de crescimento (pessoas que querem entender de verdade, que estão dispostas e são dedicadas). Para estarem presentes Espíritos superiores, não podemos fazer reuniões de caráter banal, para perguntar coisas como números da loteria, resultados de jogos, ou para pedir privilégios em detrimento de outros. Não basta um membro bem intencionado se os demais se dão ao divertimento e à futilidade.
  • Um ambiente propício. Ambientes viciosos certamente impediram resultados confiáveis. Embora tenhamos algumas recomendações, questões como luz e música devem ser estudadas e modificadas em conformidade com o andamento das reuniões. Podem ser feitos testes e compilados os resultados.
  • Seleção da abordagem para a busca da resposta. Kardec foi extremamente simples, fez perguntas (escritas, faladas, pensadas). Ele próprio afirma, em alguns momentos, não ter tido sempre a habilidade para fazer as perguntas que realmente extraíssem o que se quisesse saber. O principal, antes da pergunta, é o objetivo por trás dela, porque a habilidade será conquistada na medida em que se avançam as investigações. O objetivo, por outro lado, é sentido pelos Espíritos e transmite a eles a confiança que podem, ou não, depositar em nós.
  • Seleção de um método de avaliação e de validação dos resultados obtidos. Kardec obteve, como resultado de toda a sua organização, respostas. Ele, além de observar o médium e suas características, prestava atenção na linguagem utilizada pelo Espírito, na maneira como este se portava, no conteúdo daquilo que dizia (ideias, preconceitos) e menos no nome de quem assinava (mesmo quando um Espírito em específico era evocado). Kardec validou por meio de comparações com respostas obtidas por outros médiuns e/ou oriundas de outros Espíritos, recebidas das mais diversas formas e em muitos lugares (na casa do milhar). A razão estava na retaguarda, na guarda e na vanguarda. Quanto mais conhecido se tornou o Espiritismo, mais material surgia, porque mais pessoas se dedicavam a estudá-lo.

Kardec foi categórico:

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares[10].

E, mais a frente:

O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo à vontade. Quem quer que tentasse desviá-lo do seu providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de que os Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão cair por terra qualquer modificação que se divorcie da verdade[11].

  • Quando as respostas ou conteúdos parecerem promissores, mas ainda incertos, precisarão passar por mais investigações. Eis uma das razões pelas quais Kardec se dedicou à Revista Espírita. Ali, ele colocava para discussão parte de seus achados e tinha a oportunidade de confrontá-los com os achados de outras pessoas ou mesmo com as ideias que pudessem trazer qualquer obstáculo racional que contrariasse a lógico (importante: Kardec esteve sempre aberto para discutir com qualquer área do conhecimento, pois seu compromisso era com a verdade).
  • Até aqui, o que vimos foi que Kardec tinha o tópico de estudo em mente (objetivo), selecionava os meios para obtenção das respostas (metodologia), obtinha as respostas (resultados), investigava o teor e a validade dessas respostas, as confrontava com outras ideias (divergentes e convergentes) e/ou resultados (discussão). Atendidas todas essas características ele então as publicava como parte do corpo doutrinário (atestada confiabilidade). Para termos uma ideia, a primeira edição de O livro dos Espíritos (1857) foi publicada com 501 perguntas e respostas. Depois ela foi revisada, complementada e passou a ter as 1019 perguntas que conhecemos. E quanto mais Kardec estudava, mais material ele produzia, porque mais avanços eram feitos (mais saber). Em alguns casos, as respostas eram contrárias às próprias opiniões pessoais, o que nada as invalidava. Por outro lado, isso servia como prova da honestidade dos que estavam à frente desses estudos, já que primavam pela verdade antes de se ocuparem em tornar consenso as opiniões que lhes eram próprias.
  • Todo esse caminho não encerra o caráter científico, porque qualquer pessoa pode se dar à experimentação e encontrar por si mesmo o que Kardec e vários outros acharam (reprodutível). Uma só resposta diferente seria suficiente para refutar tudo? Não, até porque Kardec não se assentou em uma única resposta. Mas a beleza está no fato de que o Espiritismo está disponível para ser questionado a qualquer momento (falseabilidade ou refutabilidade) e nunca para impor “a” verdade inabalável. Além do mais, o próprio Kardec disse que o Espiritismo até hoje seguiu, e seguirá no futuro, o ensino progressivo que lhe for dado, e nisto ainda está para ele uma causa de força, pois jamais se deixará distanciar pelo progresso[12].

Aqui estão, portanto, alguns aspectos que demonstram não ser a resposta em si a ciência por trás do Espiritismo, mas a forma como podemos chegar a essa resposta e depositarmos nela nossa confiança.

Algumas questões comuns

A seguir, apresentamos algumas perguntas que figuram em muitas discussões e que servem como complemento ou como síntese do que apresentamos até aqui.

Quem detém a propriedade do conhecimento Espírita hoje?

Assim como antes, ninguém em particular. Partamos do princípio de que o Espiritismo é uma verdade[13]. Kardec deixou claro que a verdade, estando em todo lugar, mesmo que as Sociedades Espíritas desaparecessem, o Espiritismo não cairia. Nas palavras dele:

A Sociedade de “Paris jamais disse: Fora de mim não há Espiritismo; assim, se ela deixasse de existir, nem por isto o Espiritismo desviar-se-ia de seu curso, porque tem suas raízes na inumerável multidão de intérpretes dos Espíritos no mundo inteiro, e não numa reunião qualquer, cuja existência é sempre eventual[14].

Da mesma forma, dizemos hoje: desapareçam os centros e as federações e o Espiritismo continuará intacto, pois os Espíritos continuarão a trazer sua mensagem. Falará em nome do Espiritismo todo Espírito sério cujo compromisso com a verdade seja uma constante e não haja nele a preocupação em propagar suas opiniões pessoais como sendo o corpo doutrinário do Espiritismo. Estará apta a compreender essa mensagem toda pessoa que se entregar sinceramente e com equilíbrio ao estudo, sem crer irrefletidamente e sem temer exageradamente.

Como nos prevenirmos das interferências dos médiuns já que são possíveis?

Sempre há, em algum grau, interferência. O médium educado, intelectual e moralmente, minimizará esse efeito, mas ainda não o tornará nulo. O preparo do médium é fator essencial para favorecer o estabelecimento de uma ligação com bons Espíritos. Um médium vicioso, descompromissado e precipitado não ensejará uma comunicação segura e confiável. Vale ressaltar que o médium não tem por obrigação, para ser qualificado como bom médium, reproduzir ipsis litteris as palavras do Espírito, desde que seja capaz de causar o mesmo efeito com as suas próprias palavras.

Em razão de muitas mensagens falsas atribuídas a grandes nomes estarem em circulação nos meios digitais, devemos ter em mente que a advertência para analisar a linguagem do Espírito e o caráter da comunicação não implicam esforço hercúleo para tentarmos ver o bem onde visivelmente está o equívoco e a mistificação. Uma colocação equivocada, um termo confuso, uma construção mal elaborada podem ser toleráveis e até mesmo compreensíveis, já que possivelmente promanam do médium. Porém, quando cada frase exige relevarmos uma série de aspectos contrários ao bom senso; ou quando tentamos ficar vendo o objetivo por trás das falas, por estarem elas confusas e mesmo estranhas, então estaremos diante de uma mensagem a ser descartada (não importa o nome ilustre que possa ostentar sua assinatura ou o médium por intermédio do qual foi obtida).

Qual a aplicação prática desse assunto nos dias de hoje?

Evita o médium iniciante se precipitar aceitando qualquer comunicação surgida por seu intermédio; assegura ao grupo um crescimento seguro e tranquilo; previne da mistificação e de processos obsessivos; aumenta a predisposição para os Espíritos sérios prestarem assistência; favorece o aprendizado e a fixação do saber; aumenta a compreensão das diversidades; oportuniza o desenvolvimento da tolerância, paciência e empatia; aguça o sentido crítico e refina as próprias habilidades.

Se o Espiritismo estaria sobre bases tão confiáveis, por que não é aceito por todos?

Para responder a isso, tomaremos de empréstimo as respostas dadas pelos  próprios Espíritos:

“… as idéias só pouco a pouco se modificam, conforme os indivíduos, e preciso é que algumas gerações passem, para que se apaguem totalmente os vestígios dos velhos hábitos. A transformação, pois, somente com o tempo, gradual e progressivamente, se pode operar. Para cada geração uma parte do véu se dissipa mais. O Espiritismo vem rasgá-lo de alto a baixo. Entretanto, conseguisse ele unicamente corrigir num homem um único defeito que fosse e já o haveria forçado a dar um passo…”[15].“… Não conheceis presentemente alguns que negam os fatos patentes, ocorridos às suas vistas? Não há os que dizem que não acreditariam, mesmo que vissem? Não; não é por meio de prodígios que Deus quer encaminhar os homens…”[16]. “Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade, ele faz que os homens compreendam onde se encontram seus verdadeiros interesses. Deixando a vida futura de estar velada pela dúvida, o homem perceberá melhor que, por meio do presente, lhe é dado preparar o seu futuro. Abolindo os prejuízos de seitas, castas e cores, ensina aos homens a grande solidariedade que os há de unir como irmãos.”[17]

Como saber qual livro escolher para o estudo do Espiritismo?

Antes de mais nada, o Espiritismo não se encontra circunscrito aos livros, visto ser decorrência das leis naturais, estando, pois, em todos os locais. No entanto, os livros compilaram ensinamentos que favorecem a compreensão de princípios e dão orientações seguras para todos os interessados que buscam a verdade.

A dúvida que muitos de nós temos se dá pela existência de muitos livros, assinados por muitos Espíritos, a partir de inumeráveis médiuns. Como então saber a procedência dessas obras? Bom, para nos ajudar na escolha vale lembrar o que buscamos (nosso objetivo). Se for o conhecimento do Espiritismo enquanto doutrina, se for a busca por segurança, a partir de exaustivas pesquisas, se for as bases morais que favorecem o crescimento do ser enquanto indivíduo, então não há dúvida: as obras compiladas por Allan Kardec (são muitas, não apenas as chamadas de Pentateuco). O que acontece muitas vezes é que no afã de nos atualizarmos queremos estar a par de todas as novidades, mesmo sem termos o conteúdo base que nos aguçará o senso crítico. Ou, pode ser também, que queiramos apenas nos entreter, sem o compromisso com a verdade em primeiro plano. Isso invariavelmente fará com que andemos de mãos dadas com a insegurança e, por vezes, nos fará vítimas da nossa própria imprevidência.

Depois de ter feito uma leitura atenta do trabalho de Kardec, qualquer um será capaz de julgar por si próprio as obras que lhe virão na sequência, preservando-se de qualquer escolha esdrúxula. Poderá inclusive ler qualquer obra que seja de seu desejo sem que isso lhe impute dúvidas desnecessárias ou crie sistemas divergentes.

Não poderíamos simplesmente fazer uma lista de editoras ou de autores (mesmo por não os conhecer todos). A autonomia será guia segura após ter sido conquistada. Em matéria de Espiritismo, não há até hoje nada que tenha chegado próximo do que Kardec nos apresentou para favorecer o encontro com essa autonomia.

Vale ressaltar que o Espiritismo, embora não tenha nascido para ser uma religião, em decorrência de seus princípios, deu à religião um sentido diferente do convencional. Quando, em resposta a uma das questões elaboradas por Kardec[18], Jesus é apresentado como o modelo e guia mais perfeito da humanidade, todo o ensinamento de Jesus passou a ser visto de forma mais profunda, tanto que o próprio Kardec afirmou que o Espiritismo trouxe a chave para apreendermos o verdadeiro sentido da Bíblia e de autores sacros (resolvendo alguns pontos vistos como ininteligíveis e até mesmo irracionais)[19].

Considerações Finais

Tomamos de empréstimo as palavras de Kardec:

(…) convém notar que em parte alguma o ensino espírita foi dado integralmente; ele diz respeito a tão grande número de observações, a assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais, que impossível era acharem-se reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias. Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho, disseminando os assuntos de estudo e observação como, em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objeto é repartida por diversos operários.[20]

Além do mais:

O Espiritismo não é solidário com aqueles a quem apraza dizerem-se espíritas… Ele não reconhece como seus adeptos senão os que lhe praticam os ensinos, isto é, que trabalham por melhorar-se moralmente, esforçando-se por vencer os mau pendores, por ser menos egoístas e menos orgulhosos, mais brandos, mais humildes, mais caridosos para com o próximo, mais moderados em tudo, porque é essa a característica do verdadeiro espírita.[21]

Atendidos os requisitos (acessíveis a todos), estaremos em terreno seguro, prontos para o avanço individual e coletivo. Havendo disposição para confrontar ideias e descartar mesmo aquelas que nos são caras (quando não conformes), então não haverá freios que nos sejam capazes de parar.

O que conhecemos como universalidade do ensino dos Espíritos é um meio seguro para a obtenção das respostas que buscamos. Se hoje algo gera dúvida, o tempo se incumbirá de trazer a luz necessária. E nós nos comprometeremos com o estudo sério e com a busca pela verdade. Invariavelmente hoje ou amanhã, estaremos diante de um novo e seguro passo rumo ao progresso que nos fará transcender.

[1] Kardec A. Obras Póstumas. A minha primeira iniciação ao Espiritismo.

[2] Importante: não estamos considerando como ciência as meras opiniões de cientistas, por mais respeitados sejam eles.

[3] Kardec, A. Revista Espírita, julho de 1859, p. 258.

[4] Kardec, A. O livro dos Espíritos, questão 1

[5] Kardec, A. Revista Espírita, julho de 1861, p. 505.

[6] Kardec, A. Revista Espírita, julho de 1859, pp. 300-301.

[7] Kardec A. Revista Espírita, abril de 1864, p. 139; Kardec A. O evangelho segundo o Espiritismo. Introdução.

[8] Kardec A. Revista Espírita, outubro de 1865, p. 408.

[9] Observação: isso, por si, não é atestado de que a comunicação estará isenta de erros e que deveremos aceitá-la sem questionamento.

[10] Kardec, A. O evangelho segundo o Espiritismo. Introdução.

[11] Kardec, A. O evangelho segundo o Espiritismo. Introdução.

[12] Kardec A. Revista Espírita, outubro de 1865, p. 408.

[13] Para melhor compreensão desse pressuposto, sugerimos a leitura do capítulo 1, Caráter da revelação espírita, contido em A Gênese, de Allan Kardec.

[14] Kardec A. Revista Espírita, maio de 1864, p.194.

[15] O livro dos Espíritos, resposta à questão 800.

[16] O livro dos Espíritos, resposta à questão 802.

[17] O livro dos Espíritos, resposta à questão 799.

[18] O livro dos Espíritos, questão 625.

[19] Conferir especialmente O evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, tópico 1, “objetivo desta obra”.

[20] Kardec, A. Revista Espírita, setembro de 1867, p. 382.

[21] Kardec, A. Revista Espírita, setembro de 1869, p. 356.

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