Olhai, vigiai e orai; porque não sabeis quando chegará o tempo.
Onde estamos
“Quem dentre vós estiver sem pecado atire sobre ela a primeira pedra” foi uma fala impactante de Jesus apresentada no evangelho de João (capítulo 8) para nos pôr em reflexão sobre a intolerância humana e o quão negligentes e complacentes somos para com nossos próprios pecados. Somos quem carrega gigantes traves na frente dos olhos, pondo obstáculos aos passos; e, contraditoriamente, também quem está focado nos ciscos incômodos à visão de terceiros. Neste último caso, comportamo-nos como se nossa visão se equiparasse à das poderosas águias que enxergam suas presas a longas distâncias. No entanto, uma coisa é incontestável: descoberta ou não, qualquer imperfeição existente precisa ser trabalhada se objetivamos o fim do mal e da manifestação de seus prejuízos. A partir desse objetivo, surge uma questão importante: como podemos melhorar nesta vida de forma mais eficaz?
A melhor resposta até hoje é simples e direta, contudo pouco compreendida: o autoconhecimento.
Por que conhecermos a nós mesmos é colocado como solução de excelência? Porque o autoconhecimento nos dá direção! O ser humano almeja melhorar sua condição atual e mergulhar na felicidade. Se desejamos ser melhores amanhã, então é importante sabermos sempre o nível no qual nos encontramos hoje. Essa é uma tarefa que pode parecer fácil, porém nos enganamos. Ao refletirmos sobre nós mesmos, não é incomum acreditarmos saber pontuar claramente nossos defeitos. Somos capazes de fazer enormes listas contendo nossas necessidades de melhoria da personalidade, mas isso só será um bom exercício de autoconhecimento se dois requisitos básicos forem atendidos: a especificidade aliada à clareza e a forma como nos utilizaremos do resultado.
Não haveria efeito se elaborássemos uma lista completa com pontos a serem trabalhados e depois a engavetássemos. O autoconhecimento não é um exercício para ser encarado como mera ocupação do tempo, tendo uma listagem física ou mental como produto final. Se for assim, sempre teremos notas espalhadas pela casa e pouco resultado na vida. O autoconhecimento pressupõe um avaliação coerente de nós mesmos. Não é especular sobre desejos, sonhos, metas e objetivos; nem é relacionar todas as palavras conhecidas que representam defeitos e assumir sermos verdadeiramente imperfeitos e portadores de todos eles. Autoconhecer-nos nos torna capazes de diagnosticarmos exatamente onde estamos, o que já conquistamos e o que ainda nos falta.
O verdadeiro autoconhecimento anda de mãos dadas com a humildade. Se nós somos bons em algo, reconhecer isso não é vaidade[1]. Se ainda precisamos melhorar, reconhecer isso não é conformismo. Os aspectos nos quais nos destacamos são ferramentas úteis para nos dar segurança ao enfrentrarmos dificuldades. Os aspectos nos quais ainda falhamos nos indicam potencial crescimento, já que avançarmos em algo (ainda que só um singelo passo) é progresso.
De uma forma geral, todos nos reconhecemos egoístas e orgulhosos, em maior ou menor grau. Todavia, etiquetarmo-nos assim e carregarmos esse rótulo conosco pode não gerar nenhum resultado, mesmo se verdade. Para nos transformarmos em uma “versão aprimorada” de nós mesmos, exige-se conhecimento aprofundado e detalhado da nossa “versão atual”. Sabermos onde nos falta é um indicativo promissor para começarmos, do contrário, por onde iniciaríamos?
Ao olharmos para o nosso eu de agora, quanto mais específicos formos com aquilo que nos incomoda, maiores são as chances de conseguirmos uma solução para esse incômodo. Primeiro o diagnóstico do problema; depois, a solução. Imagine-se chegando ao consultório médico com queixas de dor de barriga, mas antes de expor sua queixa o médico se precipitasse e lhe administrasse um remédio para resfriado. Qual seria a eficácia desse tratamento? Pode ser que não lhe faça nenhum mal, mas seguramente não lhe fará o bem desejado.
Quando nós nos dizemos orgulhosos, façamos o exercício de nomear as situações nas quais nos percebemos orgulhosos. Por exemplo: “fulano não me ligou para me dar os parabéns, então também não vou mais ligar para parabenizá-lo, porque quero lhe dar uma lição”. Ao perceber a manifestação clara do nosso orgulho teremos mais chances de contornar a situação e sairmos com um resultado positivo. É mais fácil pegarmos o telefone e ligarmos para o fulano do que curar um orgulho genérico incrustado em nós. Devemos considerar, entretanto, que reconhecer exatamente esses momentos de manifestação das imperfeições nem sempre é fácil e não oferece garantias.
Você pode ter se perguntado: no exercício de autoconhecimento, como posso ter mais segurança em descobrir minhas necessidades de transformação moral? Simples: por meio da prece.
Oração como instrumento de autoconhecimento
“A prece é um ato de adoração. Orar a Deus é pensar nele; é aproximar-se dele; é pôr-se em comunicação com Ele” (LE 659)[2]; e é o “dever primordial de toda criatura humana, o primeiro ato que deve assinalar a sua volta à vida ativa de cada dia” (ESE, XXVII, 22). Por meio da prece nós estabelecemos uma corrente fluídica capaz de transmitir o nosso pensamento. O pensamento aliado à vontade (fervorosa) garantirá a energia para a prece encontrar seu destino (ESE, XXVII, item 10). Ter uma vontade honesta passível de ser chamada fervorosa exige, antes de mais nada, raciocínio prévio. Reflitamos sobre esta passagem bíblica:
“Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão” (Mt 6:2).
O desejo central dos hipócritas dessa passagem não é o consolo daqueles para quem oferecem a dádiva e sim a glorificação pelos homens na platéia. Ao, simbolicamente, tocarem as trombetas eles chamam a atenção para si e os olhares dos demais, reconhecendo neles boas pessoas, são a recompensa desejada. Toda motivação moral se apresenta como uma prece e repercute como tal. Deus não vê primeiro o que os hipócritas estão fazendo, mas a razão que os leva a fazer, porque é a motivação deles que lhes servirá de substrato para o próprio crescimento. Deus não pode implantar uma virtude em alguém que age sem consciência de sua ação. Do verdadeiro virtuoso podem ser suprimidas todas as lembranças e ainda assim ele agirá no bem espontânea e naturalmente. Como poderiam os hipócritas se tornar melhores e colher o benefício de suas ações se nem sequer estão presentes para o que estão fazendo?
A partir da prece não se espera o atendimento de nossos caprichos e seria injusto de nossa parte “acusar a providência se não acede a toda súplica que se lhe faça, uma vez que ela sabe, melhor do que nós, o que é para nosso bem” (ESE, XXVII, item 7). É importante considerar que a prece torna melhor o homem, pois “… aquele que ora com fervor e confiança se faz mais forte contra as tentações do mal e Deus lhe envia bons espíritos para assisti-lo” (LE 660), porque sempre Deus concederá àquele que orar com confiança “a coragem, a paciência, a resignação” e também “os meios de se tirar por si mesmo das dificuldades, mediante ideias que fará lhe sugiram os bons espíritos, deixando-lhe dessa forma o mérito da ação” (ESE, XXVII, item 7). Ao menos a comiseração e a simpatia dos espíritos nos virão em auxílio para abrandar a dor em situações nas quais ela é inevitável (RE, 1859, 472p.).
Na busca por entendermos a eficácia da prece, fazemos uma natural confusão com a forma como ela nos é respondida. Esperar o auxílio dos bons espíritos para que sejamos capazes de sair das dificuldades nas quais estamos não pode ser confundido com aguardar deles a resposta pronta, o apontamento exato do caminho a ser seguido. Por que os espíritos não são claros a ponto de não nos deixar dúvida? “Primeiramente, para lhe ensinar que cada um deve ajudar a si mesmo e fazer uso das suas forças. Depois, pela incerteza, Deus põe à prova a confiança que nele deposita a criatura e a submissão desta à sua vontade” (ESE, XXVII, 8).
De alguma forma, em maior ou menor grau, todos almejamos um ideal de liberdade que nos permita autonomia sobre todas as nossas decisões, mas muitos de nós se esquecem das consequências dos atos e da responsabilidade atrelada a cada escolha. É perfeitamente compreensível o fato de não termos todas as nossas preces atendidas: não sabemos o que queremos e não sabemos querer. Os espíritos não nos servirão de forma a nos tornarem dependentes deles, pois, se dizemos querer a liberdade, devemos alcançar a maturidade que nos faz dignos dela. Qual seria o sentido de se atender a uma prece na qual uma pessoa roga por saúde enquanto vive uma vida dissoluta e cheia de excessos? O que a pessoa busca com a prece, em casos assim, não é a saúde em si e sim uma forma de continuar a levar o estilo de vida inconsequente por mais tempo. Isso é um prejuízo para ela própria e Deus não faculta nossa própria destruição imprevidente. A negação de alguns pedidos é a melhor forma de nos preservarmos de nossa própria ignorância. Se o desejo de saúde for sincero (ou quando for), a pessoa ouvirá as vozes amigas que lhe pedem para se afastar desse estilo de vida e tomará as providências necessárias para começar a construir a saúde desejada.
Sendo assim, a prece ganha um destaque valioso no autoconhecimento, porque não basta sejamos capazes de pedir, é necessário tenhamos consciência do que pedimos e das consequências acarretadas por isso (para nós ou para os outros). Ademais, quantas vezes nossas orações são atendidas e o resultado não se assemelha àquele criado por nossa mente? Comumente, preocupamo-nos com os ganhos imediatos e com as consequências instantâneas, contudo desconsideramos a sucessão dos eventos a partir de então. O vício nos mostra um pouco sobre o funcionamento disso: o ganho é imediato, mas no decorrer do tempo nossas vidas ficam comprometidas com consequências danosas. A pessoa nessa situação espera, mesmo que de forma infantil, irrefletida ou desesperada, encontrar satisfação. Ela pode até apostar na sorte e aguardar a abertura de portas que lhe impeçam a dor, porém a vida é implacável na sua forma de se apresentar e nos enganamos ao acreditar ter ela o compromisso de se adequar a nós. Como disse Sêneca: “… tudo o que nos sucede por obra do acaso é instável…”[3]. De um jeito ou de outro, a instabilidade nos incomoda e nos faz buscar mecanismos para dela nos livrarmos.
Quando tivermos incorrido em erro, a pena terá a duração consoante a duração da impenitência, o que implica dizer ninguém sofrer um segundo a mais de forma injusta e desnecessária. Sendo a prece uma ação moral capaz de provocar o arrependimento e a reparação voluntária, podemos, por meio dela, abreviar nossa expiação (RE, 1861, 261p). Arrependimento, expiação e reparação constituem “as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências” (CI, VII, Código Penal da Vida Futura, 16º)
“Quando a alma do homem, inteiramente penetrada de zelo santo, se eleva para o céu na prece íntima e ardente, os inimigos interiores, isto é, as paixões do homem, e os inimigos exteriores, isto é, os vícios do mundo, são impotentes para forçar os muros que a protegem” (RE, 1863, 267p).
A oração real:
“…, a do coração, a que é ditada pela verdadeira caridade, incita o espírito ao arrependimento, desenvolve-lhe bons sentimentos. Ela o esclarece e o faz compreender a felicidade dos que lhe são superiores; impele-o a fazer o bem, a tornar-se útil, já que os espíritos podem fazer o bem e o mal. De certa modo ela o tira do desânimo em que se entorpece. Fá-lo entrever a luz. Por seus esforços pode, pois, sair do lamaçal em que está preso. É assim que a mão protetora que lhe estendemos pode abreviar-lhe os sofrimentos” (RE, 1859, 473p).
Se modificarmos a forma de pensar, os sentimentos acompanharão nossos pensamentos, nossa atitude será transformada e, consequentemente, outros efeitos aparecerão. É como a conhecida frase: não adianta fazer a mesma coisa e esperar um resultado diferente. A prece higieniza a nossa mente, afastando o lixo mental e nos fortalecendo no caminho da realização e do progresso, todavia só a ação subsequente coroará o sucesso de nossos propósitos.
No livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo” temos, em seu último capítulo (XXVIII), uma coletânea de preces que nos mostra uma forma segura de nos conectarmos com Deus, glorificando-o, pedindo-lhe o auxílio julgado necessário e agradecendo-lhe pelos benefícios percebidos. O objetivo dessa coletânea não é o de nos oferecer um repertório para decorarmos e repetirmos, mas sim para dilatar a nossa percepção sobre como podemos deixar fluir nossa espontaneidade.
O Exemplo e um exemplo
A mais famosa oração da história da humanidade é a prece dominical entoada por Jesus – mais conhecida como “Pai Nosso” (Mt 6:9-13). Ela, entretanto, está longe de ser a única deixada por Jesus.
Dizem-nos os espíritos que “a prece mais agradável a Deus é o trabalho útil” , já que
“… prova uma boa intenção, um bom sentimento, mas não pode produzir senão um efeito moral, desde que é toda moral. É excelente como um consolo da alma, porquanto a alma que ora sinceramente encontra na prece um alívio às suas dores morais: fora destes efeitos e dos que decorrem da prece, como já vos expliquei em outras instruções, nada espereis, pois sereis iludidos em vossa esperança”.
O espírito que trouxe essa reflexão (sem ter assinado um nome), arrematou-a com um conselho: “Não vos contenteis em pedir a Deus que vos ajude: ajudai-vos a vós mesmos, porque assim provareis a sinceridade de vossa prece” (RE, 1860, 108p). Assim ensinou Jesus. Quanto mais nos dedicarmos a olhar para o seu exemplo, mais compreenderemos a oração que repetimos diariamente em todos os locais. Essa dedicação nos impedirá a indignação com a falta de perdão ocasionada pelas nossas faltas. A diferença está em sabermos exatamente o significado de “perdoa-nos nossas dívidas, como também perdoamos nossos devedores” (Mt 6,12). Jesus nos ensinou primeiro a buscarmos o perdão junto à consciência divina e, na sequência, a não exigirmos para nós o que somos incapazes de oferecer. Se o nosso irmão não for capaz de nos perdoar, respeitaremos o seu momento sem lhe colocarmos uma carga maior do que a do próprio ressentimento com a qual ele terá de lidar. Advogar em busca de todos os direitos sem honrar com todos os deveres não é possível pelas leis divinas – e jamais seria justo.
Só precisa ficar claro isso não se tratar de uma barganha, ou seja, Deus não vai nos perdoar, simplesmente porque nós perdoamos. Deus não fica aguardando o nosso perdão para nos estender bênçãos. Aquele incapaz de perdoar o outro é, por extensão, incapaz de perdoar a si mesmo. O amor de Deus é direcionado a nós em todos os instantes, mas se estamos ocupados carregando a mágoa, não seremos capazes de nos percebermos infinitamente perdoados, pois todo novo segundo de vida é uma oportunidade de retificação. Alguns atos exigirão um reparo mais demorado, outros serão instantâneos. Se estamos vivos hoje é porque Deus nos diz ser possível e Ele não nos retirará a oportunidade de continuarmos. Deus não nos define pelo erro cometido, como nos acostumamos a fazer. Deus vê o que não vemos; Ele sabe podermos mais do que nos acreditamos capazes. Se formos honestos conosco, veremos a vida como um grande perdão, no qual estamos mergulhados todos os dias; e descobriremos que quem mais precisa nos perdoar somos nós mesmos. Feito isso, o foco muda e o bem entra em evidência, tornando perceptível o que antes criamos ser segredo ou milagre.
Enquanto se via injustamente condenado à cruz, Jesus fez uma oração suplicando perdão para seus acusadores. Por que Jesus não se livrou daquele mal se ele tinha capacidade para tal? Evidentemente os porquês de Jesus não podem ser sondados com precisão, mas temos alguns pontos que podem nos favorecer a compreensão inicial.
Pelo pouco que sabemos de Jesus, temos claro o fato de ele não precisar provar a si mesmo. A necessidade de se justificar para o outro, provando-se, revela a insegurança latente do ser. Os atos de Jesus antes e durante a cruz revelam sua fidelidade de propósitos e o quanto ele era capaz de lançar seu olhar para o futuro. Sua consciência transcendia. Da mesma forma que ele não fez descer labaredas de fogo dos céus para consumir quem se fez seu adversário, ele também não pediu misericórdia ou se desculpou com intuito de preservar a própria vida (material) ou de nos inspirar pena. Pode parecer estranha sua aparente inação, pois ao nos colocarmos em seu lugar não é absurdo nos percebermos tentados a achar uma rota de fuga, ou dispostos a falar o que os juízes almejassem ouvir para que saíssemos ilesos, ou capazes de amaldiçoar e odiar. Antes de mais nada, devemos nos precaver de usar a desculpa de não termos a grandeza de Jesus para justificar continuarmos atrasados na lição. O que não estava no tempo de aprendermos e nos seria impossível praticar e lograr êxito, Jesus simplesmente não antecipou.
Jesus é apresentado como o modelo mais perfeito deixado para servir de guia à humanidade (LE 625) e seria ilusório acreditarmos ser trivial seguir todo o seu ensinamento. No entanto, a dificuldade não torna impossível e Jesus, como guia consciente, não estipulou prazo. Sua estada conosco não foi voltada para nos mostrar o nosso óbvio e ser redundante com aquilo que já sabíamos. Dentre seus ensinamentos, constantemente nossa percepção do mundo era confrontada com uma verdade superior: quando acusávamos os samaritanos, ele nos contava uma parábola na qual o samaritano era o herói; quando nos afastávamos de determinadas classes sociais, ele se sentava com elas para as refeições; quando erguíamos as pedras para os pecadores, ele nos indagava sobre nossos próprios pecados; quando admirávamos a prece do fariseus, ele nos apontava um publicano que se valia melhor da oração.
O senso comum não tem, necessariamente, um compromisso com a verdade. Ele se contrói a partir da forma como vemos, interpretamos e aceitamos as coisas. Isso cria uma narrativa, essa narrativa é incorporada (nossos pontos de vista) e nos faz crer ser ela suficiente para explicar algo. A construção de narrativas não se dá apenas em um contexto coletivo, ela também se dá na intimidade dos seres. Em outras palavras: nós criamos para nós mesmos as nossas próprias narrativas, e acreditamos e vivemos em conformidade com elas. Por isso a oração é tão importante e significativa no nosso crescimento. Por servir como um “estudo de nós mesmos” (LE 660a), momentos de autorreflexão como os propostos por Santo Agostinho (LE 919) nos são úteis para nos conectarmos com Deus e sermos capazes de contestar nossas certezas, fortalecendo-as ou alterando-as, quando necessário. Apenas o diagnóstico e o constante monitoramento vão nos permitir elaborar uma plataforma segura de transformação. Vejamos um exemplo:
Imagine Beltrano, uma pessoa que foi educada a não levar desaforo para casa. Certo dia, em uma conversa acalorada sobre política nos grupos de Whatsapp da família, ao expor sua posição, outra pessoa, Sicrano, cujas ideias lhe eram contrárias, ataca seu posicionamento na forma de ofensas pessoais. Para Beltrano, naquele instante, são abertas uma infinidade de escolhas que vão desde o revide ao perdão. Se Beltrano tem a crença arraigada de não levar desaforo, o mais provável é que ele vá rebater. Isso não significa que Beltrano é mau, porém pode indicar ser ele uma pessoa ainda insegura com seus pontos de vista e convicções e, acima disso, alguém que ainda não se conhece tão bem.
Imaginemos ainda – aprofundando um pouco mais na personalidade de Beltrano – ter ele forte desejo de ser melhor. Ao se visualizar atacando Sicrano, seu desejo por ser melhor lhe avisará que algo está incoerente. Beltrano poderá se sentir culpado, ter vergonha, ficar com uma sensação de algo estar errado… Um lado vai justificá-lo, dizendo-lhe para não levar desaforo para casa, enquanto o outro vai lhe apelar para o perdão (que o torna melhor). Neste ponto, Beltrano estará em conflito, porque as narrativas que o governam são contraditórias. Caso a “vontade de ser melhor” tenha um peso maior em sua vida, isso se estabelecerá prevalência aos poucos. Se ele abrir O Livro dos Espíritos, na questão 919, para ver o que é preciso para ser melhor, invariavelmente, vai se deparar com a seguinte redação:
“…ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar.”
Naturalmente, Beltrano pode tentar convencer a si mesmo de Sicrano ter ideias retrógradas e ser uma ameaça. Mas, amparar-se na fragilidade moral de Sicrano não lhe trará a transformação desejada, porque pensar assim seria condicionar a melhora íntima àquilo que foge de seu controle. Continuando a leitura se deparará com o seguinte:
“Aquele que, todas as noites, evocasse todas as ações que praticara durante o dia e inquirisse de si mesmo o bem ou o mal que houvera feito, rogando a Deus e ao seu anjo-de-guarda que o esclarecessem, grande força adquiriria para se aperfeiçoar…“
Nesse ponto, a consciência de Beltrano não lhe deixará pedir a Deus para forçar em Sicrano a verdade na qual acredita e defende. Beltrano também não vai se concentrar em pensar na razão de Sicrano ter agido como agiu, nem criará cenários hipotéticos nos quais vence debates ou convence o adversário ideológico. Ele perceberá que a motivação de Sicrano não tem importância capital sobre a mudança a que se propõe nele próprio. Se, por outro lado, ao continuar a leitura, as dificuldades de se autoavaliar não tiverem sido totalmente compreendidas – e isso é perfeitamente possível – já que o avarento se considera econômico e o orgulhoso se julga digno, então ele poderá encontrar arrimo nisto:
“Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como a qualificaríeis, se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não na podereis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na aplicação de sua justiça“.
Chegou a hora de trocar de lugares e de se imaginar tendo atacado as ideias de Sicrano agressivamente e recebido dele o mesmo tratamento que lhe fora dado. A mente sadia se sentirá cada vez mais pressionada a não buscar justificativas para seus atos e a verdade sobre si mesmo lhe será revelada.
Considerações finais
A oração é ferramenta de autoconhecimento quando feita de coração, com fé e fervor. Nenhum pedido vão será atendido e nenhuma ação irresponsável será encorajada pelo Criador. Se fazemos da prece um estudo de nós mesmos, evitamos o falatório improfícuo e nos atentamos ao nosso progresso. Assim, estaremos focados no que é importante e necessário, sem perder tempo com sedutores desejos que amanhã serão venenos mortais. Não é porque paramos alguns minutos do dia para orar que o fazemos de forma eficaz. A prece não está circunscrita a fecharmos os olhos e repetirmos fórmulas direcionadas a Deus. Faz uma verdadeira prece todo aquele que ama, busca e espalha o amor; todo aquele que trabalha no bem e se fortalece nele; todo aquele que é honesto com seus próprios sentimentos e desejos, sem se deixar abater pelos insucessos e pelo passado.
Se a prece não fosse importante, Jesus não a teria nos ensinando em suas várias expressões e em tantas situações. Ela não é exclusiva dos virtuosos e qualquer ser humano em busca do aperfeiçoamento pode e deve dela se servir.
[1] O espírito Georges aponta ser preciso exercitar a prece para lutar contra a vaidade (Revista Espírita de 1860, 283p). Isso não seria outra coisa senão a indicação de se conhecer melhor para suplantar as próprias imperfeições.
[2] As siglas utilizadas ao longo do texto se referem às fontes de pesquisa. São elas: LE: O Livro dos Espíritos (sendo o número que a acompanha a indicação da questão); ESE: O Evangelho Segundo o Espiritismo (acompanhada pelo capítulo, em números romanos, e o item); CI: O Céu e o Inferno (acompanhada pelo capítulo, em números romanos, e o item); RE: Revista Espírita (indicando a data de publicação e a página da versão online da citação extraída).
[3] Na obra: Sobre a brevidade da vida.