O Tribunal

Acho que vou, Chicó. Estou ficando com a vista escura…”. João então perde os sentidos e acorda em um local repleto de pessoas, incluindo seus conhecidos que haviam falecido poucos momentos antes dele, que seguem em romaria, segurando velas.

Em breves momentos, aparece o diabo, querendo carregar todas as almas para o inferno. João, com sua perspicácia, questiona seu direito de ser ouvido e julgado. Eis que aparece Jesus, apresentando-se como um homem negro e inicia-se o julgamento: enquanto o diabo enumera os erros cometido pelas pessoas que ali se encontram, Maria de Nazaré surge para apresentar as atenuantes a favor de cada um deles. 

A situação descrita faz parte da ficção, mais especificamente do filme “O Auto da Compadecida”[1], inspirado no livro homônimo de autoria de Ariano Suassuna. Mas apesar de ser um episódio cinematográfico, a cena inquestionavelmente faz parte do imaginário coletivo.

A Bíblia de fato traz passagens com menção literal a um tribunal divino. O evangelista Mateus, por exemplo, alude à separação entre o joio e o trigo (MT 13: 24-30), além de fazer referência ao momento em que “o Filho do Homem (…) assentar-se-á no trono de sua glória; (…), Ele separará uns dos outros, como um pastor separa dos bodes as ovelhas” (MT 25:31-32).

A apreensão dos profundos ensinamentos contidos nos textos bíblicos, todavia, requer a compreensão de que as mensagens se apresentam por meio simbolismos. Conforme ressaltado por Kardec, há que se atentar para as grandes verdades morais debaixo das figuras que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como considerar reais os diálogos atribuídos aos animais nas fábulas[2].

Diante disso, cabe o seguinte questionamento: será que há efetivamente um julgamento do espírito, após o desencarne, em um tribunal formado por entidades espirituais, como descrito no filme?

Ao que tudo indica, não!

Entendemos que sustentar uma resposta categórica seria verdadeira presunção, uma vez que a compreensão humana, ao menos no estágio evolutivo atual, é extremamente limitada para alcançar a grandiosidade divina. Assim, estamos muito longe de assimilar, de forma plena, os mecanismos da justiça divina.

Todavia, a doutrina espírita tem a finalidade de trazer luz às consciências e consolo aos corações, inclusive com a ressignificação de conceitos usuais, que  foram inicialmente apresentados sob formas alegóricas[3]. Assim, a presente proposta limita-se a uma reflexão, quanto ao que já podemos divisar, com base nos esclarecimentos que o Espiritismo nos proporciona.

Com efeito, é necessário superar a tendência de reduzir tudo, inclusive Deus, à nossa compreensão, e buscar ampliar o pensamento. Inclusive, quanto ao tema específico, o Evangelho Segundo o Espiritismo já nos exorta: “Por que haveis de avaliar a Justiça divina pela vossa?”[4].

A literatura espírita traz várias descrições de processos desencarnatórios, sem menção a qualquer submissão a um julgamento formal e revela que o tribunal divino é uma estrutura muito mais simples – e ao mesmo tempo mais intrincada – do que aquelas que aplicam a justiça terrena. Trata-se do tribunal da consciência [5].

Em verdade, cada espírito é réu e juiz de si mesmo, trazendo consigo o próprio castigo ou recompensa[6]. Tal concepção, inclusive, evidencia que o céu e o inferno não são lugares circunscritos, mas têm início na intimidade de cada um de nós[6].

Deus instituiu a lei natural, que rege todo o universo, e gravou-a na consciência de cada ser humano[5]. Assim, cada um possui um santuário no próprio espírito[7], onde está inscrita a regra da verdadeira justiça.

Nos primórdios do espírito, que é criado simples e ignorante[5], a lei divina ainda não é por ele percebida, como se estivesse encoberta, engastada no âmago da criatura.

No decorrer de sua trajetória, ele vai adquirindo experiência e conhecimentos, descobrindo, aos poucos, o conteúdo da lei divina encerrada dentro de si. Passa, portanto, a ter “consciência da própria consciência”, granjeando a noção de seus deveres e, por consequência, tornando-se, paulatinamente, responsável pelos próprios atos.

Daí porque um mesmo ato pode ter gravidade diferente, de acordo com a pessoa que o pratica e com o contexto em que está inserido, uma vez que a penalidade será proporcional ao discernimento que o indivíduo possui[5]. A própria consciência, em verdade, não poderia condenar a violação de uma regra que ainda permanece desconhecida.

A noção de que estamos todos submetidos a esse tribunal invisível confere lógica e coesão a várias outras ideias, reveladas pelo Cristo e pela doutrina espírita, entre as quais a de que “Deus julga mais pela intenção do que pelo fato”[5]. Com efeito, a consciência certamente leva em conta não apenas o possível desconhecimento quanto ao resultado, mas também os pormenores e circunstâncias que foram significativos para cada conduta, uma  vez que todas as ações e pensamentos são arquivados e acessados pela própria consciência.

O fato de que a consciência do indivíduo é quem julga a si ressoa, ainda, na mensagem do Cristo de que “sereis julgados conforme houverdes julgado os outros; empregar-se-á convosco a mesma medida de que vos tenhais servido para com os outros” (MT, 7:2).

Identifica-se, portanto, uma estrutura verdadeiramente extraordinária, que deixa transparecer não apenas a infinita justiça, mas igualmente sua soberana misericórdia de Deus. Isso porque a consciência não tem apenas o papel de julgar, mas atua como uma verdadeira guardiã, uma sentinela que nos aconselha e sustenta a todo instante[4]. Ela atua como verdadeiro guia[5] e adverte, por vezes aos brados, quanto aos possíveis desvios do caminho.

O que acontece é que, apegados ainda às nossas imperfeições e vícios, insistimos na prática de atos contrários à lei de Deus e forjamos justificativas, de modo a anestesiar o próprio discernimento. Entretanto, o homem não possui a capacidade de transigir com os princípios divinos, nem de controlar a consciência, que representa a manifestação da centelha divina em nós. Desse modo, apesar dos subterfúgios criados, cedo ou tarde a consciência se faz ouvir, por meio do remorso[4].

 

Mecanismos da justiça ou mecanismos do amor?

Surge, assim, a crise moral, que se acentua de forma extraordinária com o desligamento do corpo físico. É que a mente humana é um espelho vivo, com verdadeira força criadora[8], sobretudo no mundo espiritual, em que a matéria é mais sutil.

Assim, quando desencarnados, amplia-se nosso conteúdo mental, tanto no que se refere ao bem, quanto ao mal, compelindo-nos a viver transitoriamente dentro dele[8]. Como nos diz André Luiz, “a ideia forma a condição; a condição produz o efeito; o efeito cria o destino”[9].

Percebe-se, portanto, que o código penal divino está relacionado a mecanismos reflexos, baseados no regime de causa e efeito, e não em uma sentença prescrita para cada falta ou indivíduo[6]. Toda violação consciente ao dever insculpe na alma a culpa e o remorso, que geram doloroso processo de autoflagelação e programam, por automatismos, os processos reparadores para si mesma[10].

Isso porque a culpa causa repercussões no perispírito, o que acarreta perturbações dos seus centros ativos de sua organização e origina verdadeiros danos e enfermidades.

O livro Renúncia apresenta esclarecedor exemplo quanto a isso: Antero de Oviedo, que além de orquestrar a separação de sua prima do marido, dedicou-se à escravização e ao tráfico de negros, desperta após o desencarne em meio à escuridão. “Azorragado pelo remorso, tinha a impressão de estar mergulhado em noite infinda, no bojo imenso de insondável abismo. (…) Todavia, o fato que mais o impressionava era ter a destra mirrada e um dos pés ressequido! A treva impedia-lhe a visão (…)”[11].

Quando finalmente ele pede, com humildade e sinceridade, o amparo divino, é socorrido por Dona Margarida, sua mãe de criação, que lhe esclarece: “Já refletiste nos resultados da empresa que tentaste no mundo? O menosprezo da oportunidade reparadora fere-te agora com amargas consequências. A mão que assinou documentos condenáveis, aí a tens mirrada; o pé que se moveu no rumo dos feitos delituosos está ressequido; os olhos que procuraram o mal repletam-se de sombras espessas“[11].

As desorganizações causadas no perispírito, tais como aquelas enfrentadas por Antero de Oviedo, terminam produzindo reflexos em uma futura reencarnação, considerando que é o perispírito que molda o veículo físico[6]. Assim, apesar de não ser verdadeira a afirmação de que toda enfermidade ou deficiência é um resgate, sempre que isso ocorre não há propriamente condenação, mas apenas a colheita de uma semeadura pretérita.

O arrependimento, todavia, é um primeiro passo, no processo de regeneração, que também demanda a expiação e a reparação[6]. Entretanto, todas essas etapas não são motivadas por vingança ou retaliação, mas existem a benefício do próprio ofensor, tal como um remédio amargo.

Com efeito, a finalidade do arrependimento é o despertar: o sofrimento que dele decorre faz com que a atenção do indivíduo seja constantemente dirigida para as consequências de seu erro, para que busque se corrigir[6]. Essa, inclusive, é uma razão pela qual existem numerosos lugares sombrios na esfera espiritual, pois possibilitam que as entidades renitentes no crime conheçam as primeiras manifestações do remorso, como etapa inicial da obra de redenção[12].

Conscientes de que a culpa é tão somente um convite da consciência ao refazimento da obra malsucedida[13], é fundamental reestruturar a relação individual que temos com ela. Com alguma frequência, as pessoas ficam presas no arrependimento perturbador, que nada edifica[13]. Outras vezes, ainda que feridas pelo aguilhão do remorso, insistem em não confrontar o erro e se valem de justificações evasivas, perdendo-se em desespero e indignação.

A maturidade espiritual nos permite não apenas nos culpar, mas nos responsabilizar, convertendo o arrependimento em mudança de atitude e compromisso com as tarefas reparadoras[13], que encerram o processo de regeneração.

A reparação, portanto, não tem o propósito de beneficiar apenas o ofendido, mas igualmente o ofensor, ao promover a pacificação e consequente libertação da consciência.

Diante de todas essas considerações, conclui-se que os mecanismos da justiça divina têm como principal finalidade o aprendizado, ao revelar as imperfeições do ser e sinalizar o caminho para o aprimoramento [5]. Por meio deles, concretiza-se o preceito de que somos todos filhos de um mesmo Pai, pois “aprendemos no corpo de nossas próprias manifestações ou no ambiente da vivência pessoal, por meio da penalogia sem cárcere aparente, que nunca lesaremos outrem sem nos lesar”[14].

Antes de finalizar, cumpre apresentar, ainda, algumas ponderações. Apesar da constatação de que, em verdade, estamos submetidos ao tribunal da própria consciência, não há propriamente equívoco na acepção de que Deus julga cada um de nós, desde que compreendido que tal julgamento não faz uso de casuísmos e formalidades. Afinal, ainda que baseados em automatismos, todos os mecanismos inerentes à lei de justiça, incluída a própria consciência, foram criados por Deus.

Pode-se fazer o seguinte paralelo com a realidade terrena: quem julga são os juízes e tribunais, mas apenas o fazem, por serem legalmente investidos do poder estatal. Assim, pode-se afirmar que o estado julga o cidadão, por intermédio dos membros do poder judiciário.

Da mesma forma, o julgamento, no âmbito espiritual, é realizado indiretamente por Deus, que se vale do tribunal da consciência, verdadeira representação da consciência cósmica dentro de nós[15].

Além disso, a justiça divina pode empregar outros recursos, inclusive dos espíritos mais evoluídos. É que o Criador atua junto às criaturas por intermédio das próprias criaturas[16].

No livro “Há Dois Mil Anos”, por exemplo, a figura de Públio Lentulus Cornelius relata memórias de encarnação anterior, em que fora o cônsul romano Públio Lentulus Sura, que fez uso de seu poder e autoridade para promover acerbas vinganças contra inimigos pessoais. Recordando-se do seu desencarne, ele menciona que passou por martírios em lugares sombrios, após o que foi socorrido e conduzido “a um tribunal, onde se alinhavam figuras estranhas e venerandas”, que determinaram sua volta ao mundo material, para resgatar seus crimes[17].

Parece-nos, entretanto, que isso não desqualifica a atuação da consciência como juiz, por excelência, de cada indivíduo.

A análise conjunta de todas as considerações já apresentadas, conduz à conclusão de que a divindade se vale da espiritualidade superior não como recurso para a condenação do indivíduo, mas para a sua salvação, ou seja, para a libertação e preservação do seu espírito[3].

Como já mencionado, nem todos conseguem, por si sós, superar a etapa do arrependimento. Assim, ficam paralisados no remorso ou insistem em mecanismos de defesa do ego, reprimindo o enfrentamento dos fatos ou negando sua responsabilidade[18]. Desse modo, o espírito não avança e se torna refém de si, aprisionado à desesperação ou à revolta.

A atuação da espiritualidade, portanto, retira o indivíduo do ciclo de sofrimento em que se encarcera e contribui para a retomada de sua trajetória, inclusive com auxílio no planejamento da reencarnação, em que serão previstas as reparações necessárias para a pacificação da consciência do infrator.

Fato é que, independente do aspecto em que se busque observar o funcionamento do tribunal divino e dos mecanismos por ele utilizados, necessariamente chega-se à conclusão de que, tal como considerada por Kardec, a justiça e o amor formam uma lei única[5].

A inflexibilidade e a dureza não existem para Deus[12], que não repudia nenhum de seus filhos, independentemente de sua inferioridade. Somos nós, ainda limitados, que precisamos aclarar o raciocínio com a luz do sentimento, para não cair em um fundamentalismo que busca por regras excessivas, onde a única regra é o amor[19].

 

Referências

 

[1] O Auto da Compadecida. Direção de Guel Arraes. Globo Filmes, 2000. DVD (102 min.).

[2] Kardec A. A gênese. 1869.

[3] VIEIRA W. Xavier FC. O Espírito da Verdade (por espíritos diversos). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2016.

[4] Kardec, A. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.

[5]  Kardec, A. O livro dos Espíritos. 1857.

[6]  Kardec, A. O Céu e o Inferno. 1865.

[7]  Xavier FC. Boa Nova (pelo Espírito Humberto de Campos). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2013.

[8] Xavier FC. Pensamento e Vida (pelo espírito Emmanuel). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2013.

[9] Xavier FC. Respostas da Vida (pelo espírito André Luiz). São Paulo: Ideal. 2015.

[10] Franco DP. Jesus e Atualidade (pelo espírito Joanna de Ângelis). Salvador: Leal, 2014.

[11] Xavier FC. Renúncia (pelo espírito Emmanuel). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2019.

[12] Xavier FC. O Consolador (pelo espírito Emmanuel). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2013.

[13] Franco DP. As Leis Morais da Vida (pelo espírito Joanna de Ângelis). Salvador: Leal, 2020.

[14] Xavier FC. Vida e Sexo (pelo espírito Emmanuel). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2013.

[15] Franco DP. Transição Planetária (pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda). Salvador: Leal, 2020.

[16] Xavier FC. Ação e Reação (pelo espírito André Luiz). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2013.

[17] Xavier FC. Há Dois Mil Anos (pelo espírito Emmanuel). Brasília: Federação Espírita Brasileira. 2014.

[18] Klinjey R. Destruindo a Culpa de Não Ser Perfeito. Disponível em: https://sw-ke.facebook.com/G-E-E-S-Grupo-de-Estudos-Espirita-Semear-105967374523163/videos/rossandro-klinjey-destruindo-a-culpa-de-n%C3%A3o-ser-perfeito/268655400834329/

[19] Silveira G. Podcast Café com Espiritismo, Ep. 102. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0AKxHxz1VnyzN9PsbBrbFh?si=jeA3dpDORmmmgAglXiTozA&utm_source=whatsapp&dl_branch=1

 

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